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Violeta – conto


© Unsplash

O sol estava se pondo e mostrando que estava na hora de se recolher. Todos da pequena cidade de Miragem sabiam que era esse o momento, um hábito coletivo da população. Ao fundo do campo, que costeava o lago principal daquele fim de-único-mundo, encontrava-se uma mulher muito concentrada no que fazia. Não chamava a atenção de ninguém, algo parecido como a transição das estações, que apenas ganham importância quando ilustram o clima da cidade. Já a moça, ainda precisava acontecer para ganhar importância. Bem, para estar no mundo da lua, só podia ser Violeta. Uma figura bela e doce, mas introspectiva a ponto de se estranhar. Cuidava dos jardins, isso a fazia se sentir útil e somado a sua característica de disciplina e exigência, acabava se distraindo da vida fria e tediosa que a pertencia.


Em seguida que o campo esvaziou, uma senhora se aproxima de Violeta. Era a sua tia avó, parente que cuidou dela desde pequena, quando seus pais a abandonaram. Dessa forma, foi Rita, a tia avó, quem ensinou e acabou influenciando Violeta a dar conta dos grandes jardins da cidade. Pois, quando uma flor morre, aprende-se a lidar com o luto e torna-se receptivo a um novo ciclo, a uma nova flor. Fazia sentido para ela. Além de as flores serem lindas, é claro. Elas são vivas e chamativas, cheias de personalidade, o que faltava em Violeta.


Finalmente, a jovem se livra do encanto que o jardim lhe proporcionava e direciona o olhar à Rita. Nas últimas semanas, a senhora andava buscando sua sobrinha-neta para ir descansar com certa frequência. Violeta, então, organiza suas ferramentas de trabalho e começa a caminhada para casa acompanhada de sua tia avó. As paisagens passavam despercebidas por quem estava acostumado com elas, e mais ainda por quem somente estava acostumado com elas. Afinal, era impossível alguém da população conhecer outra realidade ou cenário, e já que não conheciam, era como se não existisse. As casas seguiam um padrão estético: tinham dois andares, a mesma quantidade de janelas e portas, sendo, no primeiro andar, uma janela grande ao lado da porta de entrada, e, no segundo andar, observava-se uma sacada que ocupava toda a fachada da casa. Todas as moradias eram pintadas de forma alternada por uma das cores do arco-íris, isso proporcionava um aspecto geral bem divertido à pequena vila. E, misterioso. Viam-se grandes áreas públicas, como jardins, parques e lagos, muito bem cuidadas. Também viam-se as construções, tanto públicas quanto privadas, seguindo o mesmo modelo arquitetônico. A vila era pequena, tendo em torno de quinhentos habitantes, não havia tanto o que ver ou conhecer; mas, do pouco que tinha, era muito organizada. Como era possível existir esse traço de perfeição em Miragem? No início da noite, com toda a ordem da cidade e o silêncio das ruas, sentia-se que aquelas casas coloridas e amigáveis eram uma muralha que escondia a realidade sobre os cidadãos.


Chegando à oitava rua das quinze que existiam, no meio de cinco casas, estava o lar verde de Violeta e Rita. Ao atravessar o jardim de entrada, podia-se maravilhar ao ver as diversas hortas de tomate cereja, hortelã, alecrim, manjericão, pé de alface. Além de as lindas flores, rosas amarelas e vermelhas, orquídeas e lírios. Era encantadora a vida que aparentemente tinha na casa delas, ou ao menos, até se entrar na casa. Passava-se pela porta de entrada, ao lado da janela, sempre fechada não havia circulação de ar dentro da casa. Nem o cheiro perfumado como o da rua. Ao entrarem, no ambiente da sala e da cozinha, se via um espaço quase vazio, pois mal tinha móveis. Não havia retratos de família ou amigos, e decorações faltavam. Para quem visse o jardim, o quarto da moça era um surpresa: nenhuma cor, nada que fosse pessoal, a janela que abria para a sacada também estava fechada. Embora todo o aspecto sem graça do ambiente fosse estranho, vazio, como se não tivessem a vida inteira morado ali, não era isso que despertava confusão a quem fosse lá e as conhecesse. Mas sim, onde estavam as flores?

***

No horizonte do lago principal, o sol começava a aparecer e iluminar a cidade. O céu indicava que seria mais um dia nublado com possibilidade de chuva. Mas não fazia muita diferença, era mais um dia. Aos poucos, os moradores de Miragem, quase ao mesmo tempo, saíam de suas casas para dar inicio às tarefas e ocupações. Violeta saiu de casa e antes de começar a caminhada para verificar os jardins públicos, conferiu o próprio jardim. Estava... como sempre. A moça começa o trajeto em direção ao jardim próximo do lago, onde havia pausado seus trabalhos na noite anterior. Já que, nas últimas semanas vinha se despedindo dos girassóis, por sua expectativa de vida beirar doze meses e o tempo nublado não estar ajudando, qual seria a nova flor que iria plantar para enfeitar a cidade? Era um ciclo que se acabava, e se esperava. Ela estava acostumada. Aproximando-se do lago, parte mais central de Miragem, podia-se observar o cotidiano regrado dos habitantes, sabia qual caminho fazer, quando fazê-lo e por quem iria cruzar. Talvez por isso Violeta não estivesse cumprimentando ninguém, ou até mesmo olhando para alguém. Na verdade, ela estava com um olhar fixo em algo ao fundo...


O jardim, que se tornava mais próximo a cada passo largo, estava cheio de peônias, tulipas, gérberas e girassóis. Ah, os girassóis. Violeta, ao chegar perto das flores, arregala os olhos e, meio tonta, dá alguns passos para trás. Inclina seu corpo para frente e olha novamente. Chega perto das flores, melhor, dos girassóis, e... sorri. Sorri junto às lagrimas que escorrem pelo rosto, e ao soluço, pois é um choro muito intenso. Em seus pensamentos a dúvida sobre o que estava acontecendo era escondida pela emoção do que estava sentindo. Emoção. Violeta jamais havia experimentado qualquer emoção. Ela chorava, com um sorriso largo que não podia conter. Naquele momento, esqueceu tudo o que estava ao seu redor, todos que podiam olhar e se assustar com a situação. Ela estava sentindo. Permitia-se sentir, mesmo sendo uma novidade estranha. Era um manifesto de algo que ela não podia escolher. Era um sentimento.


Ainda confusa, decide se acalmar ou tentar. Seca as lágrimas com o dorso de sua mão, respira fundo e concentra o olhar no jardim. Procurava uma resposta. Como sua única certeza podia ter sido mentira? Ela nem refletia sobre a possibilidade de uma flor ficar, afinal nem seus pais ficaram. Mas, pelo menos, sobre as flores ela tinha convicção, fazia parte do ciclo elas irem embora. Só que... e agora que o girassol ficou? E aquelas expressões em seu corpo que ela não conseguia controlar, nem nomear? Só havia uma coisa que poderia ajudá-la a explicar a permanência dos girassóis, era seu livro de trabalho. Alguma resposta deveria encontrar.


Começou a correr em direção à casa, confusa e cheia de pensamentos que não conseguia administrar. Com tamanha velocidade, atravessou o campo em que ficava o jardim e quando passava a terceira rua olhou ao seu redor. Todos olhavam para ela. Violeta estava chamando a atenção e podia perceber isso. "Será que estou perdendo minha sanidade?" Quando mais uma dúvida se instaura em sua mente conturbada, ela corre. Corre muito. Até chegar em casa e se deparar com sua tia sentada no sofá. E grita: "O que da minha vida é real?".


Rita, assustada, respira fundo e manda Violeta se sentar e contar o que aconteceu. Receosa, com voz trêmula e olhar disperso, ela conta todos os fatos que ocorreram em sua manhã. Explicou que o girassol tinha que ter terminado seu ciclo. Aguardou uma resposta, mas nada. Então, continuou relatando que uma expressão veio ao seu rosto, uma energia ao seu corpo, que pingos d’água iguais aos de quando regava as plantas caíram de seus próprios olhos... O mais estranho é que havia sido muito espontâneo, não conseguiu controlar. Relembrando, durante a conversa, percebeu que tinha gostado muito daquilo. Era bom, e talvez ela até quisesse de novo. No fim do desabafo, em que Violeta não se animou para detalhar mais, afinal Rita não demonstrou estar muito interessada, ficou um silêncio. Até que Rita encara sua sobrinha-neta e diz, com calma e em poucas palavras, que nada fazia sentido, nunca tinha ouvido falar sobre isso em seus 65 anos de vida. Também era pra jovem não falar pra ninguém sobre isso, podiam pensar que poderia estar querendo chamar a atenção e isso atrapalharia o funcionamento de Miragem. "Esqueça isso", disse, terminando a conversa e se levantando do sofá. Mas Rita, sem demonstrar, ficou preocupada, ela entendia o que estava acontecendo... Violeta enlouqueceu igual a seus pais.


Decepcionada com a reação de sua tia, Violeta sobe para o quarto e se dá conta do cheiro que estava naquele ambiente, não era o mesmo do seu momento com os girassóis. Decide pegar um ar, abre a janela que ligava o quarto à sacada e, depois de um bom tempo sem ter ido ali, sai e aprecia. Aprecia a sacada, que mesmo sendo pequena e estando vazia, proporcionava uma boa visão para a cidade. Porque sempre se deixou levar pelo desinteresse à novidade, ao diferente? Ali com seus segredos, sentia o ar puro da rua, via as flores dos jardins e que de cima ficava ainda mais coloridos , observava as pessoas se dirigindo a suas rotinas. Até que se deu conta de que nunca tinha feito isso e estava sendo incrível. Era uma surpresa que ficava próxima a ela, porém, sua vida era confortável, sentia-se tão bem... Quando se deparou com essa última ideia, ficou inquieta. Resolveu buscar uma expressão nos rostos das pessoas caminhavam parecidas, como ela mesma havia feito mais cedo. Não encontrou. Deu-se conta de que se tivessem uma expressão, o nome seria "sem expressão", e não parecia interessante viver assim. Ficou mais inquieta e, no meio de sua agitação, lembrou-se do livro. Entrou no quarto, pegou o livro e começou a folhear as páginas com pressa, até encontrar a página sobre flores e suas informações...


"As flores são vida e a vida é um processo..." estava escrito à caneta por cima das palavras impressas no próprio livro "... feito para gozar do sentimento." Batendo os pés no chão, termina: "Quem sentir, libertar-se-á". Uma ânsia de vômito percorre sua garganta, estava sem controle das pernas. Sua antiga realidade tinha sido derramada junto com os pingos de "regador" dos seus novos olhos... E pronto. O começo. Desceu as escadas e sentou ao lado de Rita. Violeta ficou com seu olhar concentrado nela, era muito grata. Conversaram tanto, que a noite apareceu. Então, Violeta se levantou e deu um beijo longo na testa da tia, dirigiu-se até porta e saiu. Como seus pais.


_

Victória Barreto Gorelik tem vinte anos e é gaúcha, residente em Porto Alegre. Graduanda em Psicologia na PUCRS, se dedica à pesquisa na área. Sua escrita é um processo catártico, é fazer das palavras concretude do que não consegue nomear. Ama o universo dos livros, é vegetariana e feminista.

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