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ritual – conto


Dutch, Delft (ca. 1750–75)

antes de fazer a primeira incisão com a ponta da unha, chacoalho a bergamota de leve no ar, escutando a fruta lá dentro bater contra as paredes de fibra. é frouxa, cedendo contra a mínima força, um espaço oco que parece esperar por mim entre a casca e a carne, enquanto engancho o indicador e puxo pra cima, rasgando a pele. o suco azedo espirra em um jato que brilha na luz e entra nos meus olhos, faz arder o que o sol já machucava. sol do meio-dia e o calor já ensaiando ser desconfortável, engraçado como escasso há pouco tempo, tão rápido se torna excessivo. consigo sentir a pele queimar aos poucos e penso até que devia ter posto protetor solar, mas é o sol de inverno, diria o meu pai, então não tem problema. sorrio esfregando a manga da blusa nos olhos. meu rosto deve estar completamente vermelho a essa hora. acabo de descascar a bergamota e jogo as cascas de volta na sacola, cheia de cascas e sementes que exalam um cheiro que preenche tudo em volta. é a última. antes, a sacola cheia, transbordava. é a última. retiro um gomo e coloco ele inteiro na boca, explodindo entre a língua e o céu da boca. o suco que jorra já é morno, mas refresca. rolo um gominho intacto contra os dentes e, na parte de trás da boca, uma afta recém-formada arde em protesto. sorrio. a bergamota é doce, como todas as outras também foram doces, e não resisto a mais um gomo, depois outro. sinto o suor nas axilas, suor que eu não sentia há dias, uma semana inteira de chuva e agora o sol que tão pouco já é muito, pra mim. o suor pinga e os cabelinhos do pescoço colados contra a pele e eu deito na grama e uma voz na minha cabeça diz que a blusa é branca e a grama é mais lama que grama, mas ela fala baixo demais. brinco com um fiozinho da bergamota que ficou preso nos dedos e lembro que ela se recusa a colocar a fruta na boca se antes não tiver tirado, meticulosamente, cada mísero fiozinho do gomo. eu dizia que era frescura, eu ainda acho que é frescura. jogo o fiozinho na grama e fecho os olhos e o mundo vira magma quente e luz que dança nas minhas pálpebras. coloco o último gomo na boca. em algum lugar mais ou menos longe alguém toca uma musica mais ou menos boa e o cheiro de pipoca começa a viajar vento acima, na minha direção, mas os últimos cinco reais que eu tinha eu dei pra uma senhora que tinha um sorriso muito bonito. meu rosto arde com o sol, mas quem sabe quando eu vou poder arder de novo, então fico. hoje, tudo brilha e é imenso.



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Isabela Ferrari tem 20 anos, é estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, futura professora de Língua Portuguesa/Literatura e percebe a escrita como algo inevitável, um pré-requisito para sua própria existência. Outra coisa: é lésbica e gostaria que todos soubessem que suas personagens também são, a não ser que se diga o contrário.

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