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Foto do escritorTamara E. Costa

Pés de moleque – conto

Atualizado: 8 de dez. de 2020


© Julia Volk

Lo que brilla con luz propia nadie lo puede apagar.

(Cancion por la unidad de Latino America, Pablo Milanês & Chico Buarque)

Não nos orgulhamos a nadie em dizer que o sonho de integração econômica entre nossos povos de tão vizinhos mundos foi — é — aos poucos, apagado pelo desencadeamento das grandes forças do capital, entre outros interesses de poderosos mínimos grupos daqui ou de lá. De crise o mundo está cheio, delírios não. Daqui, seguimos, andarilhos subequatoriais. Nós éramos os autênticos e desconhecidos sonhadores da Era de Aquarius. Portugueses e Espanhóis. Brasileiros e Argentinos. Nascentes e Poentes. Lá estávamos em busca da irmandade, do contexto esquecido nas fronteiras desta tão curta passagem.

Estávamos nesta cidade de refúgio, neste último fim de mundo. Segundo La Massa, estávamos a apenas alguns dias do Amanhecer Galáctico, a Era da Luz. Voltaríamos a primeira etapa do calendário Maia, o ponto de partida de um novo cálculo em moldes, desta vez, espiralados. Há aproximadamente 26 mil anos, o tempo, segundo nossos “desaparecidos” também vizinhos, tem transcorrido em cinco etapas de 5.125 anos, cada qual com sua devida energia. Então, nesse específico despertar, poderíamos encontrar, enfim, la buena vibra da luz do centro da galáxia, e consequentemente revitalização de todos nós, seres de estranhos temores e rancores.

Nos tornamos parceiros íntimos, foi inevitável. La Massa queria ganhar litoral do Brasil, do Rio de Janeiro até chegar em Natal, numa duna nordestina, morando e vivendo e dormindo em cima dos outros nos mais baratos hostels e instalagens de nossos incríveis litorais. Eu estava lendo Vagabundos Iluminados com a bunda cheia de areia e bitucas de cigarros, entre outras varreduras. Distraído, ao meu lado, Maçaneta, o cachorro distraído-intergaláctico. Foi quando ele surgiu e me chamou para uma trilha de novos procedimentos. Aceitei. Mato dentro, fizemos o que havia de mais natural em nós com o suposto mínimo período que nos restava. O mundo iria acabar em un par de dias. Era 17 de dezembro de 2012 e, segundo os Maias ou La Massa, nos restavam somente mais quatro lapsos de tempo.

Foi na praia da Ponta onde vi La Massa pela primeira vez. Ele estava rasgando uma madeira com uma lâmina enferrujada dentro de um quiosque vazio. Estava suado e escurecido pela recorrente falta de água doce; seus cabelos longos, espontaneamente embaraçados e salgados, formavam carinhosos e dreads que lhe conferiam um aspecto de consideração e antiguidade. Pensei que estava realizando uma prancha de surf. Me enganei. Era apenas um armário movediço que lhe garantiria mais um sequência de lanches. Sombras em sol a pino, nos sentamos:

Onde está a beleza? Os grandes feitos? Os heróis? Por que os homens se fecharam em suas conchas e agora vigiam cada palavra, assustados com cada grande gesto? Se falam com sinceridade, logo vem o medo de terem falado demais — exclamei revoltadamente poético, superando Marina Tsvetaeva.

Yo estoy en busca de la respuesta. Recuerdas aquel "Oh!”? Sabes sobre los surfistas que esperan la gran ola, el tubo? Yo espero el tubo! — respondeu La Massa e gargalhamos enquanto comíamos deliciosos sanduiches de pão francês, atum e tomates madurinhos.

Enquanto eu sorria, neurinos vindos do sol aqueciam a Terra que agia como um micro-ondas. Quente, desejei penetrar a morte e enlouquecer e atravessar ali, em acordo com o desafio do mar. No percurso de pedras, entramos em cada abismo e, num desses lugares profundos, disse à Massa que tinha visto um extraordinário e inexorável Bodistava. Foi depois de cruzar um barqueiro anos póstumos ao caminho da acumulação. Em giro, imagem do discernimento-onda de contínuas pedras e retornos num circuito onde a busca pelo novo sol de janeiro havíamos alcançado. Imediatamente realizamos: não haveriam mais coincidências, apenas objetivos acasos.

Alegres orixás que aqui nesta cidade-praia haviam me orientado, em mantra entoava agradecido para dentro de mim mesmo afastado “epa hey, Conceição da Praia, epa hey, Nossa Senhora da Boa & Contínua Onda, epa hey!”. Era como se ali, dentro do tubo, esta época me tivesse afogado. E lá estava eu em São Paulo, dentro de uma jovem editora, insistindo em uma oficina de contos para aposentados. Resultado: “Memórias de um astronauta com Alzheimer”, conto lido e encerrado pela primeira vez em público. Foi terrível. Escrevíamos a partir de exercícios de extremos. Embaralharam a dançarina epilética, o ator esquecido e a monja capitalista. Eu estava tentando dominar a força que havia me metido ali ou aqui, no caminho do entrecruzamento da linguagem: uso de algumas palavras em inglês, estrangeirismos, NASA, estranhas luzitas em L, TANGO-CÂMBIO “vá já para o outro lado” e o caralho a quatro. A senhoura retrô, que então eu havia admirado por seu semblante de Hilda, revoltou-se num típico e cívico movimento Olavobilaquiano, e disse que não tinha entendido nada, que minha escrita era um escarro, sem filtro, unidade linguística ou ponto de virada, que o texto havia sido agitado espírito perturbado e que talvez eu tivesse obsediada. Naquele exato, mirei dentro de meu pesadelo imutável e maturei: “terreno da realidade, atenção, sonho acabado”.

Depois da fuga capital, havia deslizado para esta onda de exílio voluntário e, após dois dias de treinamento e planilhas, fiz meu primeiro check-in. Caiaques indo, caiaques vindo, dei até saudoso ciaozito para o Mirisola e queridos incompreendidos centro-oestinos. No rosto, se quedava uma lágrima de excentricidade. Movimentos contínuos de ondas e Buddhas indo e vindo e nós ali reunidos, beatificados. vagabundos iluminados e viajantes solitários. Éramos recepcionistas trilíngues. Trabalhávamos todos, todos os dias da semana, no Beat Hostel, que nos concedia um triliche, um colchão, um salário de merda e um travesseiro mofado. Em todas as cabeças a mesma dúvida: até quando?

É preciso dizer every single day and every single night, entre a abertura do bar e o fechamento do dia, entoávamos cânticos para a fusão de Otto e Bob Marley, Soja e Los Pericos, Rolling Stones e Damas Grátis. O violão, sempre ali parado, nos aguardava e não raro violávamos sua caixa sonora. Pink & Bird eram os mais eficazes no quesito “Repentino Tango”, nosso lamento mais repentino e robusto.

Enquanto tocávamos Please don’t rock my boat, recordei passagem 2008-2012 quando em cárcere, novamente São Paulo, havia me arrastado junto à massa pegajosa, agarrando com os dentes ralados da entrega o tijolo que éramos obrigados a movimentar para que a maquinaria publicitária continuasse a girar. La Massa tinha passado seus últimos anos em Ushuaia, antes México, La Cumbresita, Santa Fé, Icho Cruz, Carlos Paz, esses últimos todos na Província de Córdoba. De forma louca e metódica, assim unidos pela natura-força que ali nos havia colocado, mirávamos a fronteira, esse espaço tão especial no mundo, o seu atravessamento e nosso repentino encontro do lado de lá, onde se reunia a verdadeira fraternidade, o enriquecimento imaterial, mútuo, de afirmação da pluralidade e tranquilo manejo de nossos inerentes conflitos.

Cabeças de poste em mira de prematuras baratas. Depois da chuva, as calçadas ficavam sempre inundadas. Deste lado ou do outro do asfalto, siris de uma pata só irrompiam entre as pedras calçadas feitas de pés de moleque, que no passado haviam impedido o trânsito de piratas que vinham com os ouros das minas. Deste lado do século, ali no fim da rua, algumas correntes agora impediam a passagem dos carros. Certos de que nenhum auto nos acometeria, passeávamos dentro e fora das diferentes pedras até o barco que nos levava para as ilhas do lado de lá da bandeira, que de noite dormia solitária no chão-praça.

Chegamos à Antiga Cadeia Pública, nova Biblioteca, meu lugar preferido. Pela minha falta de sutileza, tropecei no asfalto que dava acesso os barcos e caí inconsciente para fora de todas as realidades, como se nunca antes... Era uma quarta-feira de miércolis. Quando acordei, resolvi me erguer. Não pude. Algo em meus afetos era íntimo & só rítmico, e eu era capaz de ouvir tão solamente o pulsar da voz de Julio Cortázar “¿de dónde le viene su penosa amistad con el amarillo?”. No chão de pedras, pés de moleque, um caracol se reabilitava de sua recente perda, um casco. Um siri monogarra então irrompeu de um hueco onde repousava meu olho esquerdo. Soterrado, entendi que era possível só ser i observar até quando.

La Massa, puxando às pressas o barco Soberano por uma corda finíssima, apitava o sinal de nossa partida para o mar. Esbaforido, disse que iríamos para o Uruguai, onde o narcotráfico dormia em sono profundo e nós, definitivamente ancorados deste lado do novo Sol, poderíamos, enfim, voltar a caminhar.



_ Tamara E. Costa é jornalista e estudante de psicologia. Escreveu enquanto atravessou Brasília - Floripa - Brasília - Londres - Brasília - São Paulo - Paraty - Brasília, queria ser escritora, beat-surrealista, chegar lá, e foi sendo.

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