
Era cedo demais para ir para casa, mas tarde demais para conseguir continuar trabalhando com a produtividade exigida pela chefia – e o supervisor, que passava a cada quinze minutos, observava isso e relatava ao diretor, sempre maldizendo o ritmo das operárias; para ele, nunca eram rápidas ou eficientes o suficiente. Todos os dias o diretor acabava chamando alguém ao seu escritório, um andar acima, no mezanino, cuja mesa ficava rente à parede de vidro – de onde ele podia observar tudo e todas.
284 era uma das operárias da velha fábrica de gravatas (infelizmente, seu nome permanece desconhecido, mas a chamaremos por seu número de matrícula na fábrica, única identificação funcional para as trabalhadoras). Ela iniciara na produção com apenas catorze anos de idade, motivada pela necessidade da família, sempre muito pobre. A mão de obra sempre fora mal paga e, de forma escassa, 284 sustentou as três irmãs mais novas e o pai que, desde que a mãe morrera, não fazia mais nada senão bater ponto em toda sorte de bares locais. Então, quem teve de bater ponto foi ela, em uma manufatura de gravatas. Com todos os seus próprios nós, se emaranhou de vez ali.
A divisão de trabalho na fábrica de gravatas era aparentemente simples: primeiramente era feita a impressão dos desenhos nas gravatas de seda; perfeitamente alinhadas, eram então inseridas na máquina de corte; o passo seguinte era o que 284 fazia: as costuras de acabamento; os últimos passos consistiam em testar a cor e passar as gravatas.
Desnecessário enfatizar isso, mas cada etapa do processo, mesmo aquelas executadas por máquinas, eram conduzidas, supervisionadas e inspecionadas por seres humanos – que, de certa forma, também se tornavam parte do maquinário depois de algum tempo. Depois de algum tempo, fica difícil dizer a diferença, mesmo para o supervisor que maldizia as funcionárias – ele se tornara uma coisa muito pior: um subalterno-máquina-agente-da-organização que recebia de salário pouco mais do que as funcionárias da produção, era tão substituível quanto elas, mas alguma coisa lhe dera uma impressão distorcida: de que era mais importante e mais valorizado pelo diretor a ponto de ter alguma moral e estabilidade.
Ao longo dos anos, 284 observou uma série de acidentes de trabalho que aconteceram com suas colegas. Desde queimaduras sérias no setor onde passavam as gravatas, até tampas de dedos decepadas na máquina de corte. Todas aquelas funcionárias que se acidentaram, sem exceção, foram demitidas mais tarde, não muito tempo após o retorno de suas licenças de saúde. Durante as raras palestras sobre acidentes de trabalho, ministradas pelo próprio diretor, elas eram usadas como exemplo a não ser seguido (nunca chamadas pelo nome, mas tratadas de uma maneira coletiva, com algum termo pejorativo como "incompetentes"). As que decidiram processar, somando a demissão pós-acidente aos recorrentes episódios de assédio moral, eram então mencionadas pelo diretor, nas palestras, como "vagabundas" que não queriam trabalhar e só queriam tirar o dinheiro de um "trabalhador honesto" como ele.
Só no setor dos acabamentos em costura manual, em que 284 sempre trabalhara, havia ela e mais dezenove outras mulheres em uma sala estruturada para a metade desse número. Elas costuravam por horas a fio em silêncio. A atenção e a concentração precisavam ser grandes. Os acabamentos tinham que ficar perfeitos, então ninguém normalmente queria ocupar aquela função – a pressão era maior ali e só se podia contar com as próprias habilidades manuais e alguma sorte.
284 tentara transferência para outro setor inúmeras vezes ao longo dos anos, mas não a trocavam sob o argumento de que não havia ninguém para colocar em seu lugar. Pedir demissão não podia estar nos planos, já que a sobrevivência dela e de sua família dependia daquela pequena quantidade de dinheiro no final do mês. Outro trabalho não era uma opção tão facilitada, tampouco, considerando o período de recessão nas oportunidades de emprego pelo qual estavam passando. Ela até tentara, mas em qualquer outro lugar receberia ainda menos. Estava esgotada pelo cansaço, mas, somando a pressão do diretor à necessidade financeira, os finais de semana eram também passados dentro da sala de costura.
Não havia saída. Literalmente, a porta de saída da fábrica era muito distante de tudo: uma abertura isolada, que só se alcançava através de um corredor tão extenso que dava a impressão de nunca terminar. Provavelmente essa impressão era aumentada pela falta de iluminação natural no galpão em que a fábrica havia sido estabelecida.
No local onde as trabalhadoras executavam suas tarefas havia janelas, mas estavam todas lacradas e não havia relógio que lhes advertisse sobre o tempo. O refeitório era tão sombrio como todo o resto e a comida era insossa. Havia dutos condutores de ar em todo o galpão e muitas lâmpadas amarelas, inclusive na cozinha, onde as cozinheiras estavam sempre suando muito, fazendo o alimento render mais do que de fato renderia pela quantidade comprada pelo diretor. Naturalmente, no verão, todas suavam demais, as pressões arteriais baixavam, as cabeças ficavam o tempo todo zonzas. No inverno, o frio fazia doer as juntas.
No banheiro, a manutenção dos vasos sanitários estava há meses pendente. Desde que a recessão de empregos começara, as funcionárias ficaram com medo de continuar solicitando ao chefe (na verdade, ao supervisor, já que só podiam conversar diretamente com o diretor caso fossem convocadas à sua sala) que os vasos fossem desentupidos e que lhes comprasse papel higiênico e sabonete. Quem podia, trazia de casa. Mas a verdade é que a maioria evitava até mesmo ingerir qualquer líquido a fim de não precisar ir ao banheiro durante o expediente, porque todos os três vasos sanitários estavam entupidos. Foram entupindo um a um. O excremento estava já na borda de dois deles. Quando chegasse à borda do último, não haveria onde conter os dejetos das trabalhadoras. E talvez, secretamente, fosse esse o desejo, já que possivelmente seria a única maneira de a sujeira ser vista. Também é provável que não consertá-los fosse uma maneira de impedir que as trabalhadoras "perdessem" tempo no banheiro.
Eram seis da manhã e, antes mesmo de abrir os olhos em sua cama, 284 já podia sentir o cheiro dos vasos entupidos até a borda no banheiro do trabalho. Ela abriu os olhos com o despertador tocando alto em seu ouvido. Pode-se pensar que já estava tocando havia alguns minutos, mas o ruído acabou misturado em um sonho no qual ela já havia levantado, se arrumado, ido trabalhar e retornado, apenas para repetir tudo de novo no dia seguinte. E acordou desse sonho para concretizá-lo, como fazia todos os dias.
Eram recém nove horas da manhã e 284 estava apressada para ir ao banheiro. Havia comido uma comida que já estava um pouco azeda na noite anterior, para não jogar fora. Tinha feito para o pai, mas ele não aparecia há dois dias. Às vezes isso acontecia, se ele saísse para beber e desmaiasse por aí. Quando voltava, depois de dias fora, costumava ir direto para o quarto e desmaiava por mais algumas horas em sua própria cama, às vezes por cima do próprio vômito. 284 tinha certeza de que era melhor assim do que quando voltava direto depois da bebedeira e era agressivo com elas.
Nesse dia, pela manhã, como de costume, 284 deixou as irmãs na escola e seguiu o rumo para a fábrica. No caminho, começou a sentir o estômago estranho. Era como se fosse um vazio que dói, mas não era fome. Porque um pouco de fome ela sempre tinha, então já estava tão acostumada com a sensação que quase não fazia mais diferença. A lembrança do cheiro do banheiro permaneceu e as náuseas começaram mais tarde, quando já estava costurando havia pelo menos meia hora. Ela se lembrava de ter sentido náuseas fortes após todas as vezes em que teve de ceder à urgência de seu corpo e correr ao banheiro. O mal-estar estava tão grande que a fez picar o dedo com a agulha umas dez vezes. Tinha sangue na gravata! Ainda bem que o tecido era vermelho.
Pouco depois, a sensação de enjoo no estômago se transformou em uma urgência para ir ao banheiro. Ela tentou se conter por meia manhã, mas a vontade era inteira e nada a poderia impedir (nem a expectativa do cheiro do banheiro) de largar a costura e sair correndo pelos corredores obscuros da fábrica. Abriu a porta do banheiro num rompante e, desapontada, contemplou o piso com poças de dejetos escorrendo lentamente de dois dos vasos sanitários. Ela então se dirigiu a sua única opção. Sentou, vazou, e com ela o único vaso sanitário que ainda sustentava os dejetos acumulados. Tudo transbordou: dejetos e desejos.
284 voltou uma última vez à sala de costura para pegar a gravata que estava costurando e que tinha seu sangue. Todas as outras tecelãs estavam de cabeça baixa, costurando, e ninguém sequer notara sua ausência. Algumas apenas sentiram o cheiro que entrou e saiu da sala com 284. Ela retornou ao banheiro apenas para uma última contemplada ao chão alagado e para amarrar a gravata vermelha com o nó mais forte que conseguiu fazer, pendurando-se no cano de ferro do teto que passava por cima do sanitário que transbordava seu conteúdo.
Era cedo demais para ir para casa, mas tarde demais para qualquer outra coisa.
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Lara Klinger, nascida e criada em Caxias do Sul (RS), é graduada em psicologia pela UCS, com ênfase em trabalho e processos institucionais, como educadora social atua há mais de oito anos como servidora pública municipal, diretamente com a população de baixa-renda. Iniciada na literatura com a leveza dos gibis do Pato Donald, hoje tem na obscuridade de Kafka a principal inspiração literária. Seu trabalho é fortemente atravessado pelo tema alienação e sofrimento no trabalho, assim como por tantos outros temas relacionados aos conflitos do sujeito no mundo.
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