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Foto do escritorViviane Roux

Onze noites – conto

Atualizado: 20 de abr. de 2020

© Yoco Nagamiya

Nunca havia reparado na finura da minha pele. Parece que sou transparente, as veias azuis tremilicam. Rios, fios, rio tanto quando o filho do meio vem aqui e canta as músicas da igreja dele. Nunca gostei dessa merda de gospel, Milcíades. Eu fingia.

Há toda uma solenidade em morrer quando você não é o morto. Apertam minhas mãos, alisam meus cabelos, vêm parente de tudo que é canto. Leem poesia. Falam tanto. Nunca tive muito dinheiro, mas decerto herdaram meu sotaque.

Sabe, acho que no fundo eu quis isso já há algum tempo, mas agora dá um medo, uma preguiça… “A noradrenalina preserva o coração, mas prejudica as extremidades. Talvez precisemos amputar o dedo mindinho.” A filha dá um choro seco, está me perdendo aos pedaços.

É dia de Natal, eu sempre odiei Natal, mas não pense que sou chata. Acho graça de tudo, tenho crises de riso e prego peças nas pessoas. Não gosto de Natal porque dá uma nostalgia, lembra quando eu ficava o dia inteiro na cozinha? Eu gostava de comer a rabanada ainda quente. Estou quente ainda, coloca a mão. Nesse último 25 me esforço. “Ela teve uma melhora”, todos ficam aliviados e vão para casa comer peru. Um presente.

1801, 1802, 1803 vezes que esse aparelho apitou. O tubo dentro de mim se infla, os pulmões vão ficando preguiçosos, ouvi dizer. Lembro quando contava os passos até a escola. Naquela época quando a gente queria comer doce batia claras em neves e enchia de açúcar.

Estou do avesso e de fraldas. Há caninhos trazendo e levando fluidos, “acesso profundo”, ouvi dizer. Máquinas presunçosas: hemodiálise, oxigênio, sonda, Dormonid. Isso dá um sono e a gente desperta para um mundo suspenso. Entende? Fica difícil se segurar assim.

Apesar de estar invadida ao limite, não sinto dor. Mas sinto tanto. A memória pesando na cabeça, sinto saudade de todos que conheci e que se foram, sinto saudade do bisneto que acabei de pegar no colo.

O neto vem, chora, me chacoalha – esse é Doutor e médico não gosta de Deus, não aceita que corpo perece. Estar estática há tanto tempo deve ser assustador. Nunca fui de dormir muito, não. Criei meu irmão mais novo enquanto mamãe lavava a roupa de oito. É, família antigamente era assim, muito filho, e a gente molhava o pão seco no café. Puro.

Eles vêm, dizem para eu não me preocupar com nada. “A gente vai se cuidar, vovó, pode ir tranquila.” Tudo bem, mas só mais um pouco. Ainda preciso fazer o plano de saúde pagar essa pequena fortuna que dei para eles por todos esses anos. Dizem que a diária do CTI é caríssima. Veja você, ainda cobram por isso.

No dia seguinte a pressão juntando, “E se a mínima encosta na máxima?”. A gente morre. Mamãe, eu lembro daquele dia que você deu a minha única boneca de presente para a prima. Até então eu brincava de boneca com as abobrinhas, desenhando um rostinho nelas. Nossa, aquela boneca, eu nem dormia olhando para ela. Noivei aos treze, casei aos quinze. Papai, por que você deixou tudo isso acontecer?

Filhinho, você sabia que no dia que você engasgou com o meu brinco eu vi Jesus? Você era tão levado, por que tinha que colocar o brinco na boca? Você foi ficando roxinho sem ar, eu me ajoelhei. Se fecho os olhos ainda vejo Jesus com detalhes, de manto vermelho. O coração.

A praia de Santos, as crianças em sal e o marido escolhido. Sylvio, desculpa por ter te levado para o Miguel Couto naquele dia, eu não sabia, por que não te deixamos em casa, não é? Eu não queria que aquilo acontecesse, que horas você chegou? A minha isca de fígado só fica boa assim porque eu coloco bastante alho. Acorda as crianças, está na hora.

Foi, eu cantava no rádio em castelhano, recebia flores de fãs e tudo. Ah, isso foi depois. Eu fui aluna do Villa Lobos, sabia? Ele gostava de mim, me pedia para ajudá-lo a testar as outras crianças que queriam entrar no coral. “Se essa rua, se essa rua fosse minha.” A gente entrava com a segunda voz e se a criança passasse para ela não dava para cantar não.

O neto médico fica discutindo, volta aqui. Eu te amo tanto, sabia? Fica. Parece que não tem jeito não, olha, você sabe que eu já criei uma galinha, né? A Ximbica, ela dormia no meu pé. E teve o Suspiro, o carneirinho, dava marradas e me jogava longe. Tive aquela porca também, qual era o nome? Ah, e o macaquinho, Chiquinho, ele tinha pavor do meu primeiro marido, como eu. A gente é bicho também. Os seus dedos estão quentinhos.

Eu cheguei de viagem, um mês cuidando do meu pai doente no Rio de Janeiro, e quando voltei não pude entrar em casa. Alegou abandono de lar. Levou meus filhos. Naquela época militar podia tudo, mulher não podia nada. Foram cinco anos tentando reaver a guarda, mas cidade pequena sabe como é, né? O juiz deu ganho de causa para ele. Eu era uma besta quadrada, queria morrer e tomei um copo de criolina, fiquei um mês arrotando aquilo. Deve ser por isso que esses dias estão se arrastando. Deus também gosta de pregar peças na gente.

Você achou que meus filhos eram meus irmãos, lembra? Naquela tarde no Engenho Novo. Por que a gente demorou tanto para se achar? Tudo bem, deita aqui, enganchadinho. Ah, não, dividir o lençol não, você peida muito. Não quero. Eu lavava roupa na mão mesmo, e a família era grande. Tenho alergia a limão, minha mão coça. Chora não, filha, a gente sabia que isso iria acontecer. A gente é feito de carne.

Eu era muito boba, parei de estudar na sétima série, eu já disse que parei de estudar para casar? Fui obrigada. Militar, vinte e sete anos, me levou para longe. Vomitei a viagem inteira, aquele navio balançava tanto. Subi para o CTI, minha neta fingia que não chorava. Ah, mas eu vou reclamar com o plano de saúde! Nunca atrasei e já me acordaram três vezes, consegui ver um pedaço da lua, já passa das três. Foram seis partos normais, mas eu não dava muito leite não. Sabe Sylvio, você sabe que quando a pressão junta a gente volta? Ah, sim, eu estava morrendo de saudades de você.


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Viviane Roux (@vivianeroux) é mestranda em Linguística pela UERJ e escreve desde antes de começar a escrever, quando rabiscava histórias que só ela entendia nas agendas da mãe. "Escrever para mim é uma maneira de dar finais diferentes às histórias que eu mesma vivi, de brincar com o tempo, de matar as saudades de quem não está e, sobretudo, de dar à luz algo que precisa sair e incomoda."

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Belíssimo. Doído, mas a beleza também não dói? Felizmente, falar da dor também cura.

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