top of page

O caso Luisa Geisler: qual o papel da literatura?

Atualizado: 4 de dez. de 2019


Luisa Geisler. © Desirée Ferreira

Na última terça-feira (12), a participação de Luisa Geisler – duas vezes vencedora do Prêmio Sesc de Literatura, finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti – na Feira do Livro de Nova Hartz (RS) foi repentinamente suspensa. A obtusa justificativa para o cancelamento de sua conversa com alunos de três escolas locais sobre o lançamento Enfim, capivaras, destinado ao público juvenil: “linguajar impróprio”, ou seja, a presença de palavrões no texto.


“Não vou nem citar as palavras aqui. É coisa de baixo calão. Vocabulário chulo. Me admira ser indicado ao público juvenil” – as palavras do vereador Robinson Andrei Bertuol (PSC), que liderou a cruzada contra a publicação e parabenizou Prefeitura, Secretaria de Educação e direção das escolas por banirem o livro (adquirido pelas instituições no final de setembro) de seu currículo, demonstram o julgamento de valor incutido nessa ideia, de que as marcas linguísticas não pertencentes à cultura das elites só podem ser interpretadas como abjetas e dignas de eliminação.¹ Quando não sofrem tentativas de censura, são passíveis de apagamento ou deslegitimação, como foi o caso de Carolina Maria de Jesus, que teve sua obra questionada durante um evento em sua homenagem, na Academia Carioca de Letras, no qual o professor Ivan Cavalcanti Proença teve a desfaçatez de dizer que o livro de estreia da catadora de lixo da favela do Canindé, traduzido para 13 idiomas e publicado em mais de 40 países, não poderia ser considerado literatura: “Cheia de períodos curtos e pobres, Carolina, sem ser imagética, semi-analfabeta, não era capaz de fazer orações subordinadas, por isso esses períodos curtos”.²


Ações como essa têm sido recorrentes no cenário político que acomete não só o Brasil, mas todo o mundo. No final de setembro, o dramaturgo e bolsonarista declarado Roberto Alvim (na época diretor do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes) atacou Fernanda Montenegro, chamando-a de “sórdida” e “mentirosa”, devido à aparição da renomada atriz como bruxa a ser queimada em uma fogueira de livros na capa da revista Quatro Cinco Um (a qual Alvim define como “esquerdista”) do mês de outubro.³ A palavra “sórdida”, de acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, entre várias definições pejorativas, também pode significar pessoa “que tem baixos valores morais ou éticos”.


Ainda no mês de setembro, na esteira de acontecimentos aviltantes com relação às artes, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, outro exemplo: Angélica Freitas se tornou alvo de moção de repúdio a partir do pronunciamento do deputado Jessé Lopes (PSL) contra a presença de Um útero é do tamanho de um punho na lista de obras literárias obrigatórias para o vestibular unificado de 2020 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). O deputado acusou a escritora de propagar “ideologia de gênero” em seus poemas. O que ele considera como “ideologia de gênero” é nada mais que o forte e expressivo posicionamento político de uma mulher lésbica e feminista, com importância inquestionável na poesia contemporânea.⁴ O caso de Angélica remete ao de Cassandra Rios, primeira escritora brasileira a vender um milhão de cópias e única de sua época a viver exclusivamente de sua literatura, até ser esmagada pela ditadura pelo conteúdo erótico (e lésbico) das obras, contrário à “moral e aos bons costumes”. Curiosamente, sob o pseudônimo masculino de Oliver Rivers, seus livros passavam pelos censores.⁵


A censura a Luisa Geisler nos alerta para a importância de compreender a utilização da linguagem, dos vocábulos empregados pelos opositores, também como método de análise da atual conjuntura. Justificar a exclusão de mulheres escritoras dos espaços sob o pretexto de “linguajar inadequado” explicita a concepção burguesa sobre qual é o papel da literatura na sociedade: de consolidação dos valores das elites e dos grupos dominantes em detrimento das vivências das classes populares e minorias. Encarar o livro como a representação de algo sublime e sagrado – no sentido estático de tais conceitos – significa reafirmar um status e um poder que só operam na contramão dos avanços sociais que podem ser alcançados através do discurso literário.


Historicamente, a literatura vem servindo de ferramenta para impulsionar diversos debates pertinentes a cada época e é evidente que a maior expressão de sua eficiência é a constante tentativa de conformá-la dentro de modelos esvaziados de efeito político-progressista. O beletrismo⁶ e o conservadorismo em relação à linguagem não permitem o movimento fundamental de estabelecimento de diálogo com a vida do leitor. Ao fixá-lo no lugar de mero espectador, perde-se qualquer viés emancipatório que porventura se identifique no fazer literário, que é justamente de aproximação, interlocução e democratização de saberes e narrativas.



⁶ Termo derivado do francês belles letres (belas letras), comumente usado para indicar atitudes de afetação em relação à cultura.



126 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
Post: Blog2_Post
bottom of page