Lá nos idos de guaraná com rolha, em uma pequena casa no interior do interior da interiorana cidade de Santuário, Aristeu reuniu seus três guris para uma conversa séria. Pôncio, o mais velho, veio carregando pela orelha o mais novo, Leôncio, enquanto o do meio, Renato, demorava a se juntar aos demais no sofá puído da casa de um mísero cômodo entre as plantações de milho.
Da porta do casebre, Justina observava a cena com Paulina agarrada às pernas e de cara amarrada por não ter sido chamada para a conversa. Aristeu se acomodou na cadeira de palha e, sem tirar o cigarro da boca, começou o assunto.
‒ Eu mais a mãe de vocês trabalhamo de sol a sol pra garantir que nossos filho seja quarqué coisa de bom na vida. E, como é nós que acordamo cos galo, é nós que escolheu as profissão que cês vai seguir.
Os três garotos, de doze, onze e oito anos, se olhavam assustados, enquanto Paulina, com nove, já começava a bater as tamancas; ela sabia que sobrara para ela o tal do "bom casamento", que sempre terminava com uma mulher envelhecida cheia de filhos esperando o marido voltar da casa da amante.
‒ As nossa decisão são esta: queremo um moleque dotô, um moleque engenheiro e um moleque que nos una com o Todo Poderoso.
‒ Um político, papai? – questionou Renato.
‒ Não, sua besta, um padre.
Pôncio gargalhou, Leôncio se retraiu.
‒ Vamo pela ordem das idade. Pôncio, o que cê escolhe, meu filho?
‒ Eu vou sê dotô, papai, vô se rico e casá com uma mulher dessas de TV!
‒ Boa escolha, moleque. E você, Renato?
‒ Sê padre é que não, cruz em credo. Vô sê engenheiro então. – O pai sorriu com a decisão.
Já não havia o que fazer: Leôncio não tinha nenhuma opção além do seminário e do voto de castidade – que, segundo seu irmão Pôncio, era a pior coisa que poderia acontecer com um homem macho.
‒ Mas que orgulho, meu amado Leôncio! – comentou Justina, sem se mover, mesmo percebendo que o garoto se encolhia no sofá. O pai sorria em silêncio; estava satisfeito porque achava mesmo que o mais novo era o único que ainda tinha salvação: os maiores eram bem precoces na arte de vigiar as meninas dos casebres vizinhos.
Leôncio resmungou:
– Quero não, mãe... Deixa eu ser outra coisa, pai...
‒ Rá, se lascou! – gritou Pôncio, enquanto gargalhava e corria ao redor do sofá. – O Leôncio vai morrer vir-gem! O Leôncio nunca vai comer ninguém! – cantarolou.
Com um tabefe do lado da orelha, Aristeu encerrou a gritaria de Pôncio.
‒ Tome tento, moleque, que linguajar horroroso é esse? Respeita pelo menos tua mãe e tua irmã!
‒ Vixe, pai, Paulina é mais esperta que nós três junto. Já até mostrou as calcinha pros meninos da entrada de Santuário! – acusou Renato. Aristeu imediatamente adquiriu uma coloração roxa de quem parecia mais estar sendo sufocado.
‒ PAULINA...!?
A menina deu de ombros. Não achou que devia respeito ao homem que escolhera profissão para os seus irmãos e a deixara de fora.
‒ Pois foi que Renato e Pôncio iam apanhar dos moleque e eu troquei a vida deles por mostrar um tantinho da calcinha.
‒ Nunca mais, Paulina, nunca mais pense em mostrar quarqué coisa pra homi nenhum que não seja seu marido! Não dá pra ter uma puta na mesma família de um padre! – Leôncio desatou a chorar.
‒ Pois a mim parece que Leôncio não qué sê padre, não, pai. – Renato e Pôncio arregalaram os olhos com a astúcia da irmã.
‒ Isso significa que eu devia te deixar ser puta?! – vociferou Aristeu, partindo para cima da menina, que não se movia nem mudava a expressão do rosto.
‒ Sei não, papai. Mas cê devia deixar Leôncio sê o que ele qué, ara.
Aristeu, já se cuspindo todo, tomado de raiva da filha precoce, encerrou o assunto aos berros:
– Pois já chega! Não vô aceitá filha puta. Não vô!
Naquela noite, Paulina ficou de castigo enquanto Aristeu repetia, aos resmungos, que não aceitaria filha puta jamais. Leôncio só dormiu depois de chorar toda a água do corpo.
Na manhã seguinte, com as marcas da cinta do pai, Paulina se aproximou de mansinho da mãe e perguntou ao pé do ouvido:
‒ Mamãe, o que é que uma puta faz?
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Maya Falks nasceu Márcia Bastian Falkenbach no dia mais frio de 1982. Aos três anos já criava suas primeiras histórias, uma paixão que a acompanha até hoje. Escritora premiada, com participações em diversas antologias e revistas literárias, Maya também é publicitária, jornalista e graduanda em Letras. Escreve resenhas e reportagens para o projeto Bibliofilia Cotidiana e presta serviços de leitura crítica, produção textual e aulas de escrita criativa por meio do Escritório Literário. Santuário é seu quinto livro.
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