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Dona Odeth – conto


© Wellcome Library n. 39959i

Naqueles arredor, ninguém respeitava mulher viúva. Um-um. Dona Odeth não era burra, tinha já se situado que o dono da venda tava-lhe era enfiando a mão. Queria as vacas de raça que Vadinho tinha deixado de porção. Eram cinco, boas, gordas, mesmo quando o capim ficava ralim, queimado de geada, elas davam um jeito lá de converter a pobreza em leite. E como! Mas o leite vinha cada vez valendo menos. Cada vez que ia lá com as caçambas na carroça, voltava com menos charque, farinha e açúcar. Dona Odeth morava com a irmã Soraya, que não tinha dado pra casar. Era mulher de deus, rezadeira mesmo, vinha gente de longe ouvir suas palavra de muita sabedoria.



Calhou de ser dezembro, e as criança em casa. Quando tinha escola era bom, tinha merenda, tinha fartura. Agora pareciam uns passarinho pelado, a boca aberta o dia inteirinho, o mais pequeno no peito que nem um carrapato num cachorro magro. Que Odeth não tinha era nada: só dente e dois braços fortes, de ficar ela mesma lotando a carroça com o leite das vacas. Tinha as galinhas também, marronzinhas, boazinhas, andando pra lá e pra cá, deixando a casa toda cheia de titica. Ficavam olhando atarantada quando colocava a mão por debaixo da quentura e pegava os ovos. Profanando o ninho das mães, que é a coisa mais perfeita na criação: aqueles bicho simples que não tinha nem miolo direito, mas que sentava e vigiava direitinho os ovo até virar pinto. O ovo, que não tinha nada de semelhança ao pinto, já tinha no coração da galinha a feição de um filho. Mas doce de chuvisco, fios de ovo, tava se vendendo bem na cidade, e os pintinho de Odeth de boca aberta esperando o de comer. Antes elas do que eu. Mais um ovo roubado na cesta.



Talvez tivesse que ter esperado um pouco mais. Vadinho andava bebendo, jogando, torrando o dinheiro na cidade. Até com mulher e não tinham mesmo arranjado doença da vida? Ela que casou donzela, se dando a ver em médico da cidade, pra ouvir dizer que tinha doença ruim. Doença do mundo. Ela, que num pisava um dedinho de pé no mundo, isso era coisa do marido. O médico fez pouco, receitou pomada, banho violeta. E ela agarradinha com a bolsa de palha cruzando a cidade de volta pra casa na serra, parecia que carregava um selo. Judas tinha beijado ela na cara. Ai, que quando chegasse, ia dar uma coça nesse marido. Ia arrancar o couro dele todinho. Quando pegasse ele de manguaça dormindo na varanda, ia ser ali mesmo. E o marido que andava devendo na praça, ninguém ia nem se importar de saber quem tinha dado cabo do desgramado. Dito e feito. Nem a polícia não foi lá, que era longe. Enterraram o dito cujo nos fundos da casa, junto com os dois ou três miguilins que não tinha vingado que Odeth era seca. O paralelepípedo com sangue pisado ficou no batente da casa, mode aviso: aqui ninguém mexe com essa mulher, que ela se vinga.



Ficou até meio prosa de si. Matou o marido e aquilo nem tinha gosto de pecado. Foi pitar um cigarro na varanda, olhou o paralelepípedo, olhou o céu, não sentiu nada. Matou o marido. Fez contas. O marido ia matar a ela, os filho, de fome. Ia jogar tudo. Ia perder tudo. Ia contratar mulher da cidade e contrair matrimônio fora do casamento. Isso ela não podia deixar. Matou o marido porque era uma mulher de negócios. Chamou Soraya para se confessar. A irmã mais velha não tinha dado pra casar, era muito sabida. Não falou palavra. Fechou os olhos, fez que sim com a cabeça, ficou assim conversado que vinha morar com Odeth, cuidar da cria, das vaca, galinha, tocar a terra pequena. Viver.



Ia tangendo a charrete com uma mula boa e calma, a caminho da cidade, ruminando lá seus pensamentos, suas matemáticas. E o leite cada vez valendo menos.

Você só tem dente, mulher! Gustavo gritava quando Odeth ia chegando. Ela ouvia. Não tinha outro jeito.

Era dezembro, mas o calor não chegara propriamente. Brisa boa. Odeth de mangas arregaçadas dando a ver que tinha braços bons. Não era velha. Gustavo também era homem de negócios, entrou a fazer umas contas.

Mana Odeth, o charque tá chegando pouco.

Não tenho mais o que de dar não, mano Gustavo. Me vê outra coisa então.

Outra coisa tá em falta. Se quiser, pode ir buscar lá em Vassouras.

Mas até lá o leite estraga!

Pois é.

Ela, mulher de negócios, entrou a fazer contas. Tinha ali grande variedade de produtos que não iam sobrar na fazenda. Uma picareta, uma pá nova, uma enxada, um ancinho.

E essa picareta aí que o senhor tem?

Tu agora vai dar picareta de comer pras criança, é? Essa é nova.

Ele riu. Ela, não.

A senhora tá é muito zangada. Isso é falta de homem. Vamo entrar, passar um café e conversar os preço, se a senhora não se importa.

Vou levar a picareta. O café, deixa que eu faço.



Ah, homem de deus. Não viu o que eu fiz com meu marido? Pois que o senhor não me deixa outro jeito, minha carne é fraca e meu pecado é a ira. De um golpe só, Odeth cravou a picareta na nuca de Gustavo, que ficou ali emporcalhando o batente. Parecia sangue de porco mesmo, ia demorar pra limpar. Mas não tinha mulher nem mãe nem filho de sustentar, e muita gente de lá já andava reclamando dos preços ruins. Mode que ninguém reclamou quando passou a administrar a mercearia, com preços muito melhores, e a picareta com sangue pisado decorando o batente da loja.


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Carmen Alves é professora e escritora. "Eu escrevo os livros que gostaria de ler."

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