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Um livro é uma arma – por Alícia Gither


Conteúdo publicado originalmente


A ação "Um livro é uma arma" é uma iniciativa para o mês da consciência negra. A cada quinta-feira de novembro, uma blogueira convidada intervém com resenhas e comentários acerca de obras de autoria de mulheres negras. A convidada dessa semana é Alícia Gihter, do Literalícia.


Cidadã de segunda classe, de Buchi Emecheta


Segundo livro escrito pela autora Buchi Emecheta, que apresenta um caráter autobiográfico. O livro conta a história árdua de Adah, nascida em Lagos, na Nigéria, durante a década de 60. Desde criança, Adah demonstra uma paixão e um desejo enorme pelo conhecimento e pela educação. No entanto, viver dentro de uma cultura extremamente patriarcal, a qual privilegia a educação para os homens, é um desafio muito intenso que Adah decide enfrentar. Emecheta traz à tona em sua narrativa a vivência de uma mulher africana que passou a maior parte da sua vida sendo humilhada e explorada. Durante a infância, Adah já era obrigada a ajudar em casa, não só financeiramente, mas também nos afazeres domésticos. E, após a morte dos seus pais, sabia que precisava de um casamento para poder realizar o seu sonho. No entanto, passou a ser explorada pelo marido e pela sua família.


O livro apresenta essa carga pesada, de uma mulher que vive sob os moldes patriarcais, os quais colocam a protagonista apenas para servir ao marido e gerar os filhos. Emecheta escreve com um tom doloroso, mas muito simples; e é por meio de sua escrita que adentramos a vida da personagem de uma forma incrível. O mote da narrativa acontece quando Adah se muda com Francis, seu marido, para a Inglaterra. O sonho que sentia de poder fazer uma faculdade e se tornar uma escritora parecia mais perto do que imaginava. Chegando ao país do seu sonho, Adah se depara com a realidade de ser uma mulher e ser uma mulher negra. Menosprezada pela sociedade e maltratada pelo marido, Adah precisa ser muito forte para conseguir lidar com toda essa situação.


A leitura foi densa, pesada, e acredito que seja necessário fôlego para poder digerir toda a história. No entanto, é também muito fluida e envolvente. É por meio do Cidadã de segunda classe que Emecheta relata sua trajetória, sua superação e seus desafios. Encontro em Adah uma força descomunal, uma vontade de enfrentar todos os preconceitos e atravessar as barreiras impostas. Uma forma excepcional de denunciar a romantização da maternidade, o colonialismo, a submissão da mulher, a xenofobia e o racismo. Buchi Emecheta insurge de maneira admirável e sensacional. Mediante sua narrativa é possível ter reflexões necessárias e debates importantes acerca dos temas apresentados em suas histórias. Sem dúvida, a autora é fantástica e vale muito a pena ser lida! Ressalto ainda que o livro antecede a história de No fundo do poço. São livros que você consegue lê-los fora da ordem de publicação, mas que se complementam por haver essa continuidade.




Buchi Emecheta nasceu em 1944, na região Iorubá da cidade de Lagos. Viveu boa parte de sua infância na terra natal dos seus pais, Ibuza, onde cresceu a partir dos ensinamentos da cultura igbo. Sempre gostou muito de ouvir histórias. As contadoras eram chamadas de "mães", seguindo a tradição igbo, e Emecheta adorava ficar horas aos pés delas, as quais despertaram-na o desejo de se tornar uma contadora de histórias também. Durante sua infância, Emecheta não teve os mesmos privilégios que o seu irmão e passou boa parte dessa etapa de sua vida em casa, até que, após muitas insistências, seus pais decidiram matriculá-la em uma escola missionária para meninas. Assim, em 1954, Emecheta conseguiu uma bolsa de estudos em uma escola de elite em Lagos. No entanto, por causa da perda de sua mãe e seu pai, Emecheta se viu sozinha, precisando morar na escola, até conhecer, aos 11 anos, Sylvester Onwordi, de quem se tornou noiva. Emecheta viveu em um casamento difícil e conturbado, violento e abusivo, o qual lhe gerou cinco filhos. Ao começar a escrever e a colocar em prática a sua vontade de ser contadora de histórias, viu o marido queimar seus textos em um momento de fúria. Sendo assim, surgiu em Emecheta um desejo ainda maior de terminar sua graduação e se tornar uma escritora. Após o divórcio de Onwordi, que negou a paternidade dos filhos, Emecheta se viu ainda mais necessitada em aprimorar seu inglês e sua comunicação com o restante do mundo. Foi então que, após algumas rejeições, a autora conseguiu se tornar colunista no periódico inglês New statesman, no qual começou suas escrevivências. Os textos de Emecheta se tornaram um original, e, em 1972, publicou seu primeiro livro, In the ditch (Na vala), e, logo em seguida, o segundo, Second-class citizen (Cidadã de segunda classe), ambos com teor autobiográfico. Emecheta ainda escreveu mais alguns livros, os quais têm caráter histórico, e busca retomar a Nigéria colonial. Infelizmente, em 25 de janeiro de 2017, Emecheta falece, deixando um legado para muitas outras contemporâneas, além de desconstruir o estereótipo da mulher negra africana a partir das suas narrativas. Buchi Emecheta emergiu para deixar muitos ensinamentos e, acima de tudo, nos transpassar esperança.




Água de barrela, de Eliana Alves Cruz


Uma narrativa emocionante sobre matriarcado, ancestralidade, luta e resistência. É por meio da história de seis gerações de sua família que a escritora rememora a vida das mulheres negras que viveram desde o Brasil Colônia num processo de luta pela liberdade e sobrevivência. Por meio da história de Umbelina, Dasdô, Anolina, Martha, Damiana e Celina revisitamos esse passado que denuncia a vivência dessas mulheres sob o julgo do trabalho exploratório e, ao mesmo tempo, nos apresenta a cumplicidade, a resistência e a fortaleza do matriarcado. O livro trata-se de um romance histórico que nos apresenta inicialmente a travessia das primeiras personagens dessa história, de África para o Brasil. É num contexto de pré-abolição que Eliana nos faz revisitar inúmeros momentos históricos, sob uma perspectiva diferente da que nos é concedida ao estudarmos na escola. A autora nos apresenta personagens reais, humanos, subjetivos, e nos faz entender como as relações de negros e brancos, escravizados e senhores, se deu de forma extremamente profunda e complexa.


Ao chegar no período de pós-abolição, o livro problematiza a ideia da liberdade concedida pela princesa Isabel. A autora nos faz enxergar o quanto essa liberdade, de fato, nunca existiu. Leis como a do Ventre Livre e a do Sexagenário nunca foram sinônimos de liberdade, mas, sim, de formas diferentes de continuar beneficiando os senhores brancos nesse sistema escravocrata. Ainda, nos deparamos com como as mulheres tinham um papel importante para a manutenção desse sistema, uma vez que elas eram uma das, ou mesmo as principais, fontes de sustento da família por meio do ofício de lavadeira. É nesse sentido que Eliana apresenta suas personagens: mulheres guerreiras e que lutaram com as forças ancestrais para romper um circuito de lutas e dificuldades impostas a elas. Ao apresentar a luta e o trabalho exploratório que essas mulheres tiveram, a autora nos faz enxergar como a luta feminista ainda era muito elitista, por acreditar que o empoderamento feminino se daria a partir do trabalho da mulher. Eliana nos apresenta de forma explícita que enquanto mulheres brancas lutavam para terem autonomia, principalmente pelo sufrágio feminino, as mulheres negras não iriam usufruir desse poder.


Acho que o grande mote desse romance é a resiliência e a união dessas mulheres, mesmo com tanta dificuldade, para conseguir quebrar um ciclo de lutas por meio do conhecimento e da persistência de não mais quererem essa realidade para as próximas gerações. Portanto, a educação e o conhecimento emergem como a verdadeira ferramenta de libertação. Mais ainda, podemos observar não só o passado sob outra perspectiva, mas também enxergar o presente e perceber como podemos ser agentes transformadores. Ler esse livro me proporcionou o reencontro com minha família também. Confesso que não pude deixar de lembrar de mainha me contando sobre sua infância e de voinha relembrando sua vivência laboral. Assim como Damiana, vovó também fora lavadeira, e ler sobre a história dessas mulheres, sobre a ancestralidade da própria Eliana, me retornou à minha própria história.




Eliana Alves Cruz nasceu em 1966, na cidade do Rio de Janeiro. Graduou-se em Comunicação Social e se pós-graduou em Comunicação Empresarial. Autora também de mais dois romances, Eliana participou da 39° edição dos Cadernos negros, em 2016, e em 2017, contribuiu com mais dois contos para a 40° edição, além de participar da antologia premiada Novos poetas. Foi em 2015 que seu primeiro romance, Água de barrela, venceu o Prêmio Oliveira Silveira, promovido pela Fundação Cultural Palmares, instituição responsável pela primeira edição do livro, no ano seguinte. Hoje, a autora lança mais um livro, Nada digo de ti, que em ti não veja, em que também busca trazer a ancestralidade e o resgate histórico, aspectos muito presente nas narrativas de Eliana.




Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves


A história, de grandeza inquestionável, que perpassa esse livro trata sobre a vida da Kehinde, mulher africana, sequestrada aos oito anos de idade, e trazida para o Brasil escravizada. Dentro de seus quase oitenta anos, a narradora-personagem nos faz acompanhar toda a trajetória de sua vida aqui, no Brasil, atravessando inúmeras situações que desenham a história do nosso país, mas sob uma perspectiva totalmente diferente. Kehinde chega ao Brasil e aqui passa a se chamar Luisa Mahin, a qual hoje conhecemos como a mãe de Luís Gama, orador, jornalista, escritor, e um dos maiores abolicionistas da escravização no Brasil. Sendo assim, iremos conhecer a história de uma mãe que escreve para um filho.


E o que falar dessa história e dessa narrativa, a qual não superei até o momento? A história de Kehinde me emocionou, me fez rir, me fez sentir tantos e tantos sentimentos, me fez conhecer tantas coisas que eu não fazia ideia. Eu realmente senti que vivi os seus quase 80 anos junto dela, conhecendo cada detalhe de sua vida e de sua trajetória tão marcante. Me apeguei à personagem de uma maneira que nunca pensei que poderia me apegar. Kehinde foi uma ponte, sem dúvidas, para eu querer mais ainda conhecer e me aproximar da minha própria ancestralidade. Um defeito de cor foi um livro que me marcou e me transformou em muitas coisas. Pude aprender tanto com Kehinde, principalmente sobre acreditar mais nas coisas. Aprendi com a Kehinde a ter fé e esperança. Foi difícil me despedir dela, mas foi impossível impedir a sua volta ao Orum. Eu sentia que era uma pessoa muito próxima de mim, com uma intimidade muito grande. A leitura desse livro, sem dúvidas, me transformou demais e, sinceramente, acho que não tem como terminá-la de forma diferente. Já sinto muita falta da companhia da Kehinde, mas sou muito grata aos ensinamentos dela.




Ana Maria Gonçalves nasceu em 1970 em Ibiá, Minas Gerais. Após uma viagem à Bahia, se encantou pela Ilha de Itaparica, onde pôde desenvolver o seu trabalho ficcional. Gonçalves estreou no romance com seu livro intitulado Ao lado e à margem do que sentes por mim, em 2002, o qual foi fruto da sua imensa dedicação ao estudo multifacetado da literatura, bem como do universo cultural da diáspora africana brasileira. A autora também produziu muitos textos críticos, apontando o teor racista em muitas obras de muitos escritores, dentre eles Monteiro Lobato. Gonçalves sempre esteve ativa nos posicionamentos antirracista, principalmente dentro da crítica literária.









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Alícia prefere ser chamada de Alí, tem 21 anos e estuda Letras Português/Espanhol pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Começou a cultivar o hábito da leitura na fase da adolescência, e, desde então, esse hábito vem acompanhando-a, dando-a uma bagagem imensa sobre a vida e a sociedade. No começo da quarentena, em meados de março de 2020, Alí viu-se disposta a falar sobre literatura na internet, principalmente sobre o seu papel revolucionário na vida das pessoas. Começou a usar a leitura, também, como ferramenta de autoconhecimento, e, por isso, decidiu abordar, principalmente, a literatura negra no Literalicia.





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