Tragicomédia de Maya Falks é carregada de realismo mágico e denúncias sociais
A obra traz a história de Santuário, uma pequena cidade interiorana situada em qualquer lugar esquecido deste Brasil multifacetado. Apesar de seu nome indicar um local de paz e tranquilidade, a cidade em questão é palco para episódios bastante densos, levantando motes como pobreza extrema, violência masculina, prostituição, feminicídio e corrupção.
São vinte contos que, reunidos, transformam-se em um romance narrado por várias vozes, nenhuma delas plenamente confiável ou comprometida com a realidade. Ao longo da obra, a própria voz da cidade se repete, dando conta de espalhar histórias e lendas que nem sempre têm um desfecho. A ilustração vai aparecer como uma terceira linguagem a tecer os fios dos eventos, ocupando não um papel secundário ou meramente representativo, mas trazendo outras perspectivas e cenas do cotidiano dos habitantes de Santuário. A autora, que é também a ilustradora, lança mão dessa linguagem de forma oportuna: tendo caráter complementar e essencial à construção da narrativa, há, portanto, uma transição de lentes – a micro e a macro –, estabelecendo um diálogo entre as subjetividades individuais e coletivas.
As temáticas que amarram os contos oscilam entre a morbidez e o alívio cômico. Evocando a sensibilidade do sofrimento humano e descontraindo com situações surreais e engraçadas, Maya provoca reações e sentimentos contraditórios no leitor. Nessa tragicomédia, a autora se vale do realismo mágico, que se expressa nos casos recortados e recontados por gerações, ora como contos populares, ora como fatos memoráveis, característica típica da oralidade.
Além disso, o romance nos leva, sutilmente, a relembrar crimes ocorridos no país nos últimos anos. O Brasil de Santuário definitivamente não é o Brasil visto nos cartões-postais, mas, sim, o que é posto para debaixo do tapete. Não obstante, como recurso subversivo, ainda que irônico, os exemplares vão acompanhados de cartões-postais sortidos com originais das ilustrações do miolo, imagens referentes a lugares-chave da cidade interiorana esquecida pela grande mídia.
Ao abordar temas dramáticos e já amplamente explorados na literatura, Maya tem o cuidado de evitar o apelo sensacionalista e autopiedoso que tais assuntos podem provocar, costurando a narrativa com maestria e conduzindo as expectativas de maneira leve e despretensiosa. No entanto, apesar do tom espontâneo, o enfoque nas mazelas sociais de Santuário funciona como um golpe no estômago do leitor. A cidade não é apenas o cenário dos acontecimentos, mas o personagem central da narrativa.
santuário | maya falks
2020
ISBN: 978-65-990969-3-8
220 p.
R$38,00
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