Porque deus amou o mundo de tal maneira, que deu o artista. Okay. Amém. Existe uma cena em “Pergunte ao Pó” de John Fante que acho que introduz muito bem toda a discussão que quero fazer aqui. Arturo, seu protagonista, um escritor vivendo em Los Angeles e precisando de um novo conto que seja para pagar as contas, se encontra de frente com a igreja:
“Não li Lenin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Falando comigo mesmo nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: li O anticristo e o considero uma obra capital.
Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A Igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatães.
Puxei a imensa porta, abrindo-a, e ela emitiu um pequeno grito como um choro. Acima do altar, crepitava a luz eterna vermelho-sangue, iluminando em sombra carmesim a quietude de quase dois mil anos. Era como a morte, mas também me fazia lembrar de bebês chorando no batizado. Ajoelhei-me.
Era um hábito, ajoelhar. Sentei-me.
Melhor ajoelhar, pois a pontada aguda nos joelhos era uma distração da terrível quietude. Uma prece. Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo Poderoso, vou jogar limpo nesta questão: vou Lhe fazer uma proposta: Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E Lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o Velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém.”.
Esse livro é marcado por mudanças bruscas de um personagem perdido que não sabe bem que postura manter e salta entre os extremos, é o que gosto do livro, mas não é o ponto. Recorrer a deus em um bloqueio criativo me resgata um tanto o olhar das pessoas com relação a arte e ao artista, de quem não consome também, são induzidas a isso, mas principalmente de quem consome e quer colocá-la em uma posição “elevada”, não movidas pelo prazer que a arte produz, mas pela vontade de criar uma elite para chamar de sua. Olhar este que os artistas ajudaram a produzir ao longo da história e que os desumaniza.
No excelente “Escrita em Movimento” da Noemi Jaffe, ela fala sobre como a arte, com recorte na escrita, é construída de fato e como as pessoas acham que é construída, por meio da inspiração, discorre sobre a origem da palavra e de onde vem essa ideia sacra ou satânica do artista: “a inspiração é compreendida ou como dom inato [...] ou como algo ‘soprado’ por alguma entidade sobrenatural”. Afinal, inspiração vem do verbo em latim inspirare que significa “soprar em”.
“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.”. Para o humano criar, emular vida, era preciso que deus soprasse outra vez e assim o artista deixasse sua condição de humano ou de um humano qualquer, pelo privilégio de outros sopros. Noemi aponta a origem: “durante o século XIX, a arte buscou construir uma autoimagem aureolada de isolamento e genialidade, como se os artistas românticos tivessem sido eleitos e ‘recebessem’ sua escrita de algum mensageiro externo, de preferência divino ou mesmo diabólico.”.
Tão próximo de deus como os santos ou do diabo, se espera do artista o sacrifício como um mártir ou como os pactos pedem, e o consumidor de arte, da “verdadeira arte”, este que acha que a arte é extraordinária, para poucos, para os “raros” que encontram prazer nela ou a entendem, esses seres um tanto patéticos que acreditam ser tão especiais, colam nesse sacrifício para se sentir, não mais perto de qualquer entidade, apenas longe de outros humanos.
O artista não vive de arte, não se alimenta de arte, não veste a arte e se abriga nela, o artista não sobe na arte para que ela o leve onde precisa estar, onde quer estar, para onde sente saudade de estar, o artista não se cura apenas com arte, o artista nem mesmo consegue consumir a arte de outro artista que admira com sua arte, este é o campo físico das coisas.
Continuando com a Noemi: “A modernidade e as vanguardas do início do século passado procuraram derrubar a mitologia que se estabeleceu em torno do artista inspirado e eleito, trazendo a prática artística para mais perto do chão, do dia a dia, dos indivíduos comuns.”. E muitos daqueles seres que comentei antes só conseguem agora olhar para trás.
Lili Baillargé é escritora, nascida no Ceará, em 1997, e criadora do Leia Mulheres Vivas (@leiamulheresvivas), perfil no Instagram dedicado a falar de literatura feita hoje por mulheres de diferentes partes do mundo. Publicou de forma digital e independente os contos "Germinal" e "Vento da Noite", disponíveis na Amazon.
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