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"Quem quiser ter ideias novas, leia livros velhos"¹ – Posfácio de Constância Lima Duarte

Atualizado: 13 de out. de 2020





As qualidades que Ana Elisa Ribeiro, com muita perspicácia, atribuiu às escritoras estudadas no presente livro – teimosia, paciência e persistência –, deduzidas a partir da leitura de cartas em que elas refletem sobre a condição de profissionais das letras, essas mesmas qualidades poderiam ser atribuídas também a Ana Elisa. Desde que a conheci, primeiro como escritora, depois como ensaísta, logo percebi o quanto era determinada em seus objetivos. E nada melhor que este trabalho para dizer tudo isso.


Desde 2012 dedicada ao estudo da edição e à pesquisa sobre as mulheres no campo editorial, ela nos brinda agora com cinco ensaios que refletem sobre redes intelectuais, espaços literários e como se dava a circulação das obras no país, em meados do século XX, no justo momento em que se consolidava a presença feminina na literatura brasileira.


As escritoras escolhidas – Clarice Lispector, Lúcia Machado de Almeida e Henriqueta Lisboa – vão exemplificar com singular precisão as inúmeras dificuldades enfrentadas na época (só na época?) pelas mulheres que ousavam ingressar no campo literário, espaço então hegemonicamente masculino.


Através da leitura minuciosa e muito atenta de inúmeras cartas trocadas com familiares, amigos e editores, a ensaísta detecta os sentimentos (mal-disfarçados) de angústia e insegurança que as afligiam e, também, a determinação consciente de que precisavam agir se queriam ser reconhecidas enquanto escritoras. Nas correspondências pesquisadas, encontram-se os sofridos bastidores vividos por elas para a edição de seus livros, e, mesmo que tragam “certa encenação”, apontam para os desvãos e os desvios da história literária. E discutem o mercado editorial, o processo de criação e, principalmente, a construção das redes de amizade e companheirismo.


No caso de Clarice Lispector, como parte de sua correspondência se encontra publicada, a pesquisa pode ter sido mais fácil. Mas, para conhecer os testemunhos de Lúcia Machado de Almeida e de Henriqueta Lisboa, foi necessário adentrar nas preciosas entranhas do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, manusear velhos papéis, abrir envelopes, e até se familiarizar com suas caligrafias, no caso das cartas manuscritas.


Clarice, enquanto residia no exterior, contou com a parceria amiga das irmãs e também de amigos como Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, João Cabral e Manuel Bandeira, que, cada um à sua maneira, liam os textos e a orientavam no processo de publicação. A insegurança da escritora fica evidente em muitas cartas na expectativa aflita de opiniões sobre seus escritos, em querer os livros imediatamente publicados, na irritação diante de uma negativa ou na postergação dos editores. Cada “trabalho parado”, ela dizia, parecia impedi-la de ir adiante, e chega a confessar, numa das cartas, que era quase uma “doença” o desejo de se “livrar” logo dos inéditos. (Talvez, quem sabe, porque soubesse que seu tempo entre nós não seria muito extenso.)


Os estudos de Lúcia Machado de Almeida e de Henriqueta Lisboa caminham numa direção próxima, porém diferente. O fato de elas terem o privilégio de usufruir – ao lado de Laís Corrêa de Araújo – de um espaço no prestigioso AEM² provoca na ensaísta outro tipo de reflexão: por que tão poucas escritoras logram êxito, apesar de tanta persistência, em obter o reconhecimento de seus pares e serem merecidamente “arquivadas”?


Ana Elisa Ribeiro toca nesse momento numa questão crucial: o sistemático apagamento da memória literária de tantas mulheres, que, apesar de uma trajetória intelectual ativa, de obterem reconhecimento em vida, após a morte costumam ser esquecidas, nunca mais editadas, nem mesmo mencionadas nas histórias literárias. Costumo dizer que muitas mulheres sofreram de memoricídio, ou seja, tiveram sua memória e história de luta e de conquistas assassinadas pelo corporativismo masculino que, dominando todos os espaços de poder, promove a discriminação da literatura produzida pelas mulheres, reduzindo-a a algo menor, negando-lhe a crítica e a presença nos manuais, dicionários e compêndios de história literária.


A título de exemplo, Ana Elisa registra um episódio vivido por Lúcia Machado de Almeida, em meados da década de 1970. Ao ser criada a Fundação de Arte de Ouro Preto, seu nome foi rejeitado para membro da instituição, a despeito de seu prestígio e reconhecimento nacional como agente das letras e da cultura. O marido, então, ao ser convidado em seu lugar, teve a honradez de não aceitar o cargo por entender que ela era mais competente para ocupá-lo.


A surpresa que ainda hoje provoca esse tipo de atitude me fez lembrar de um episódio semelhante protagonizado por Amélia Beviláqua e seu marido, Clóvis Beviláqua. Quando da criação da Academia Brasileira de Letras, a escritora, apoiada pelo marido, se candidatou a uma vaga, que lhe foi imediatamente negada, uma vez que as mulheres não podiam integrar tão seleta instituição. Ao ser convidado para assumir uma cadeira, o conhecido jurista declina do convite afirmando que, onde sua mulher não era aceita, ele não queria estar.


Mais conhecida por sua obra poética que pelo trabalho realizado como tradutora e crítica literária, Henriqueta Lisboa se destaca, na pesquisa de Ana Elisa Ribeiro, pela persistência na divulgação da própria obra, enviando sistematicamente seus livros para os críticos e suplementos literários, arquivando tudo que era impresso a seu respeito. Emerge dessa forma como autora não apenas dos textos, mas também do gesto, a priori memorialístico, de transformá-los em arquivo. Isto é, em obra.


Mas o mais interessante, a meu ver, neste livro de título tão instigante – O ar de uma teimosia: trilhas da publicação em Clarice Lispector, Lúcia Machado de Almeida e Henriqueta Lisboa –, é o fato de a ensaísta se valer da experiência vivida pelas autoras para refletir sobre o próprio tempo. Afinal – é ela quem diz –, as redes de leitura, as influências e os processos editoriais continuam sendo necessários hoje, apesar da brusca transformação tecnológica ocorrida nas últimas décadas. Da cópia manuscrita ou datiloscrita para os textos registrados diretamente no computador, parece haver uma distância quase infinita. Assim como em outros setores da vida. Mas – também é ela quem reflete – nem tanta transformação ocorreu no que diz respeito à condição feminina, e no esforço da mulher para ser reconhecida como escritora.


Conforme se comprovou nesta obra, a discriminação e a desvalorização dos escritos das mulheres podem ser constatadas em diversas situações, como nos júris de concursos literários, na organização de eventos, nas resenhas de livros, e só não vê quem ainda pensa que a literatura deve pairar acima de tudo – inclusive do gênero, da classe, da etnicidade e da orientação sexual de quem escreve. O preconceito contra a expressão “literatura feminina” parece negar o fato de a criação literária ser formatada pela experiência de quem escreve. Enfim: o patriarcado, assim como o racismo e outras formas de dominação, está estruturalmente fincado – ainda hoje – em nossa sociedade. Simples assim.


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¹ Conselho de Maria Amélia do Carmo a sua neta, a escritora Ercília Nogueira Cobra (1891-?), autora de Virgindade anti-higiênica: novela de uma revoltada (1924) e Virgindade inútil (1927). Ver: <https://www.cobra.pages.nom.br/ft-ercilia.html>.


² O AEM é não apenas um espaço de biblioteca e documentação de escritores mineiros, mas um centro de memória aberto à pesquisa (ver:<https://www.ufmg.br/aem/inicial/acervo.htm>).




Esse posfácio integra a obra O ar de uma teimosia: trilhas da publicação em Clarice Lispector, Lúcia Machado de Almeida e Henriqueta Lisboa. Garanta seu exemplar na pré-venda com 10% de desconto.




_ Constância Lima Duarte é pesquisadora do CNPq, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e mestre em Literatura Portuguesa pela PUC-RJ. Em 1996, aposentou-se pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e, em 1998, assumiu a Cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, através de concurso público. No pós-doutorado, realizado em 2002 e 2003 na UFSC e na UFRJ, desenvolveu o projeto “Literatura e Feminismo no Brasil: trajetória e diálogo”. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA) e do Centro de Estudos Literários da UFMG, coordena os grupos de pesquisa Letras de Minas e Mulheres em Letras.



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