Os irmãos ibejis brincavam no quintal, como sempre. Faziam buracos no chão. Mas não era exatamente a brincadeira o que os entretinha. Eles escavavam a terra à procura de água. No final dessa busca angustiada, as crianças gêmeas alcançaram uma fonte subterrânea e com sua água cristalina abasteceram potes, vasos e quartinhas. Ofereceram então a todo o povoado o líquido precioso, matando a sede de seu povo e afastando a morte. (Prandi, 2001, p.369)
A recente perda do menino Miguel, que morreu ao ser deixado sob a responsabilidade da patroa de sua mãe em um bairro nobre de Recife, me trouxe muitas reflexões sobre qual é a extensão e quais são as razões para a negligência que crianças pretas e pobres sofrem no nosso país. A mãe de Miguel trabalhava em um bairro nobre da capital de Pernambuco, sem direito à quarentena; sua patroa pediu, então, que ela fosse levar os cachorros da família para passear. Sari Corte Real, a patroa, incomodada com a criança querendo ir ao encontro da mãe, leva o menino até o elevador, aperta o botão que o conduziria até o nono andar. Miguel, ao sair do elevador, tem acesso à determinada área onde havia uma caixa de condensadores de ar-condicionado, sem tela de proteção, e cai. Quando os movimentos antirracistas e negros se revoltaram nas redes sociais sobre o caso, muitas pessoas também saíram em defesa da ideia de que esse caso não implica uma questão racial e social. Mas, como conhecemos esse discurso tipicamente brasileiro que nos quer tirar o direito de se revoltar contra o descaso sofrido pelo povo negros no nosso país, não abrimos mão de reivindicar que Miguel foi negligenciado tanto pelo seu status social quanto pela sua cor.
Quando decidi escrever esse texto meu desejo era traçar o caminho da negligência, de onde parte esse sentimento de repulsa à criança negra e desde quando começa o descaso. Então, dei início à escrita desse artigo entrevistando minha mãe, perguntando onde ela mora e se queria dizer a idade, confiando na sua sensibilidade e bom humor para não nos levar para um lugar emocionalmente desgastante. Acabei repensando sobre o que realmente abordar quando se fala de cuidado com crianças negras, um tema que vejo ser pouquíssimo discutido. Minha mãe noivou aos catorze anos, destino comum e normalizado para meninas adolescentes na época dela. Aos treze minutos de entrevista, sorrio, brinco e digo que quando eu tinha catorze anos ainda estava comendo terra; ela sorri. Durante o processo de construção desse texto algo me marcou: o corpo de minha mãe curvado, tímido, sentado na cadeira de madeira meio pequena para a grandeza das coisas que contava. Ela vai ler isso e espero que entenda o tamanho da mulher que uma menina de catorze ou quinze anos precisa ser para misturar a brincadeira com coisa que deveria ser só de gente grande.
Mas minha mãe fala de outras coisas também. Do bullying na escola, da falta de atenção dos professores e de como eles não puniam as garotas que a agrediam. Essas memórias me fazem pensar que nos anos 60 e 70 a infância era um filme de bang bang, um deserto, ou não existia como a conhecemos hoje. Quando minha mãe relata entrar na casa da sogra aos catorze anos e ser vista com desconfiança por ser a "neguinha", cria uma lacuna na minha mente, é como se houvesse esse espaço em branco onde deveriam estar os cuidadores e os adultos. Cadê os adultos? Essa lacuna ainda é presente na vida de muitas meninas negras e muitos meninos negros. O mais triste é pensar que o conceito de infância parece ainda ser um espaço em branco na vida de crianças negras em geral.
A infância mudou nas últimas décadas e eu não acredito que o mundo mude simplesmente por conta do tempo. O tempo é o que fazemos dele. Se a infância significa outra coisa em 2020, se deve à luta e ao trabalho de seres humanos que passaram a enxergar as crianças como pessoas vulneráveis e que precisam ser protegidas; se deve, principalmente, à luta pela universalização dos direitos da criança e do adolescente. De acordo com Ariès (1981), autor de História social da criança e da família, a infância passou a ser interessante para as sociedades ocidentais europeizadas apenas a partir dos séculos XIX e XX, o que coincide com o avanço do papel da educação formal na vida dos sujeitos. Mas de quais sujeitos Ariès fala? Afinal, crianças negras já existiam nesse período enquanto crianças, enquanto seres humanos vulneráveis, portanto, não deveriam ser protegidas?
É um fato histórico que as crianças, até as últimas décadas do século XIX, eram escravizadas e usadas para todo tipo de serviços, quer fosse no espaço urbano ou no espaço rural. Por que eu não disse crianças negras? Porque é preciso que essa informação entre na sua cabeça: crianças eram escravizadas. Sim, eram crianças de pele preta, crianças filhas de pretos e pretas, mas, acima de tudo, crianças. Não acredito que pessoas negras que porventura venham a ler esse artigo precisem que eu enfatize essa informação, mas muita gente precisa. Não eram "menores", não eram escravos, eram crianças humanas escravizadas e, inclusive, usadas sexualmente para todo tipo de atividade que aprazesse a quem as possuía. Para Gilberto Freyre, “A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização do Brasil”. (2002, p.46) O que Freyre, conhecido como propagador do mito da democracia racial, não deixa claro é que essas "mulheres" eram de fato, muitas vezes, pré-adolescentes. Em artigo publicado, Marcel de Almeida Freitas retrata essas relações da seguinte maneira:
No livro Crônicas do negro no Brasil, Sérgio Diogo Teixeira de Macedo (apud Novais, 1979) se refere ao fato de que meninas negras de dez, onze anos eram estupradas por sinhôs-moços e sinhôs-velhos; que padres viviam em aberto concubinato com escravas, criando os filhos aí gerados com imensa responsabilidade paterna, o que originou até algumas ilustres famílias, mormente no Nordeste. (Freitas, 2011, p.66)
E como era a vida para os meninos negros nessa época? Como isso se reflete na infância dos meninos negros hoje? O próprio Freyre, em sua fantasia branca de paraíso racial, admite que os meninos negros escravizados compunham uma grande parte da força de trabalho no Brasil escravista:
Das faturas de escravos destaque-se este caso típico: de quarenta negros mandados buscar em 1812 por Bento José da Costa, o mais poderoso escravocrata pernambucano de seu tempo, e que constam de um livro manuscrito do outrora Engenho do Salgado (…) só dois eram "negros barbados"; os mais eram moleques, molequinhos, crias e molecões. Dezesseis moleconas. (Freyre, 2012, p.61)
O que era oferecido a esses meninos pós-escravidão eram as ruas. Se o Brasil era esse mar de relações afetivas entre meninos negros, brancos e caboclos, como o historiador pinta em vários momentos de suas obras, por que o lugar reservado para esses meninos ainda é a rua? Temos realmente direito à infância? Não de acordo as estatísticas dos órgãos de proteção à infância e à adolescência. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), em 2013, estimou que das 3,187 milhões de crianças em situação de trabalho infantil, 1,99 milhão (62,5%) são negras.
Na minha infância em escola privada, onde fui "a negra" durante muito tempo, me lembro claramente de um menino negro. C.A., como vamos chamá-lo, tinha diversos problemas de aprendizado. Entre as reclamações que as professoras tinham sobre ele, uma das principais estava concentrada em seu físico – ele era muito grande, por isso tinha de sentar no fundo da sala. Ele era tratado como um incômodo na sala de aula e não estranharia descobrir que esse foi o motivo que o fazia repetir a mesma série diversas vezes. Na sala de aula as crianças negras são menos elogiadas ou acarinhadas que as crianças brancas e não é uma opinião pessoal. Faria et al., em Infância e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras, conclui que:
Na creche, em todas as suas salas, havia um furacão. O "furacão" pode ser conceituado, de acordo com as professoras, como "um menino bastante terrível, que se movimenta o tempo inteiro, que estraga as brincadeiras, que também bate nos colegas", ou seja, o vilão da sala, mas com o seguinte detalhe: ele é negro. Em todas as salas havia um "furacão negro". (Faria et al., 2015, p.145)
Era esse o papel que meu colega C.A. e muitos outros meninos negros ocupavam tanto na escola, quanto na família e na igreja. Tentando, talvez, encontrar a contramão da minha própria experiência na convivência com meninos negros, entrevistei Davi Nobre Pereira – doutorando em Estudos latino-americanos e Estudos da África e da diáspora africana na Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos –, que cresceu em uma comunidade quilombola no Maranhão, sendo educado de forma diferente de C.A. e de tantos outros meninos negros da minha infância. Quando questionado sobre como se dava a questão do cuidado coletivo dentro e fora de sua comunidade, o estudioso nos responde o seguinte:
"Para mim, crescer numa comunidade quilombola é realmente crescer dentro da proteção de uma comunidade. Meu pai trabalhava muito aqui para a cidade, porque trabalhava de barco, e minha mãe era professora. Mas minha mãe viajava bastante para cá. Sempre tinha alguém para cuidar e eles eram muito cuidados, sempre com minha madrinha ou minha irmã... Quando não, era sempre com minha avó materna ou paterna, ou com a irmã do meu pai. Era sempre dentro do círculo (de proteção), onde as pessoas sempre tinham muita preocupação com você, se te encontravam na rua, se te encontravam num lugar, sempre te recomendavam voltar para casa, te levavam para casa. Quando me mudei para São Luiz teve um impacto muito grande o quanto essa noção de comunidade foi quebrada, as pessoas, apesar de fazerem um tipo de comunidade, são bem diferentes. É muito "cada um cuida das suas vidas" (...). Me lembro que quando tinha uns seis, sete anos vim passar as férias na casa de uns parentes do meu pai. Foi uma experiência muito dura. Porque eu tinha essa ideia de comunidade e aqui não tinha nada a ver com isso, para mim foi muito difícil lidar até pelas questões estruturais, ao viver uma infância na periferia você convive com uma série de coisas que não temos em comunidade. Isso me impactou muito."
A experiência que Davi relata, de cuidado e zelo por parte de diversos adultos em sua comunidade, certamente não reflete a minha realidade e a dos meninos negros à minha volta em Vitória da Conquista, uma das cidades menos negras da Bahia. Principalmente quando falamos sobre o cuidado no ambiente escolar. O quilombo, através da fala de Davi, é mais uma vez reafirmado como um espaço de resistência enquanto opera como um lugar livre para construções de afetos entre os seus aquilombados, muito diferente dos espaços dominados e formados pela lógica colonialista do senhor de escravos.
Meu amigo G, que também compartilha da experiência de estudar em uma escola para a classe média, onde a maioria dos alunos são brancos, diz o seguinte sobre sua mudança de percepção, enquanto pessoa negra, ao longo de seu processo de formação:
"Eu estudei em uma escola aqui no meu bairro, é um colégio particular. É um dos três colégios mais elitizados da minha cidade (...) Na minha época, pessoas negras retintas, na minha sala, só tinham duas que consigo lembrar agora. Tinham outras pessoas da minha cor, que eu também me considero negro. Mas retinto tinha apenas um menino, que a galera apelidou de 'Pelé'. (...) Na época que eu estudava lá eu não conseguia ter essa ideologia e visão de mundo que eu tenho hoje. (...) Eu estudei nessa escola dos cinco aos quinze anos, aquela era a minha bolha. Então eu não conseguia perceber várias questões que depois eu vim a perceber, como a questão das costas – que pasme, mas eu achava errado. Porque aquele era o meio e eu achava que todo mundo era daquele jeito, que todo mundo tinha o acesso que eu tinha."
Quando perguntado sobre se havia alguma interferência em favor de seu colega retinto, na situação dele ser apelidado daquela maneira, meu amigo explica que o apelido não seria totalmente negativo, pois estaria vinculado à sua habilidade com relação à prática de esportes – essa ótica vale toda uma outra discussão sobre raça. Mas eu conheço o tipo de escola em que esse meu amigo e eu estudamos. Não havia interferência, da mesma forma como quando fui obrigada a desfilar vestida de Tia Anastácia. Nós conhecemos o sentimento, nós conhecemos o confinamento aos papéis que podemos exercer na escola e na vida, em geral, e sabemos como não há de fato uma escolha. Não há escolha, porque você não é objeto de afeto e acolhimento.
A escola pode ser uma experiência de abandono para muitas crianças negras. Abandono porque você é tirada de casa, o espaço onde supostamente está protegida, é amada e cuidada, para ficar ao dispor de adultos que não te enxergam, não te toleram e não têm fé em você. A criança fica, em torno de seis a oito horas, sob a supervisão de adultos que não a consideram alguém merecedora de atenção, como um ser vulnerável e que precisa de ajuda. Eu sempre ouvi que, em comparação às outras crianças, deveria ser dez vezes melhor em tudo. Isso mesmo, ninguém nunca escondeu de mim o seu racismo, mesmo com minha mãe dando aula na sala ao lado. Minha mãe, mulher negra, que não teve direito à adolescência, não teve acolhimento quando foi a vez dela de enfrentar o bullying e a discriminação, só soube da maior parte das humilhações as quais fui submetida no ambiente escolar quando me senti confortável para contar, já na fase adulta. Ela estava, muitas vezes, literalmente na sala ao lado, mas eu sentia que não podia alcançá-la. Mesmo a um passo de distância da pessoa que mais demonstrou afeto por mim durante minha vida, a escola foi um lugar onde sentia que havia sido abandonada ao cuidado de pessoas que não estavam interessadas em cuidar de mim.
Quando completei trinta anos a vida presenteou nossa família com outra menina negra, minha sobrinha. Buscando uma perspectiva e um caminho onde, para além de reconhecermos os problemas da infância negra, sejamos capazes de proteger melhor as nossas crianças e de ensinarmos aos nossos a fazer o mesmo, conversei com minha irmã (branca) sobre o que ela tem feito para proteger a filha negra. Minha sobrinha herda um caminho que galguei, fruto de conversas difíceis que minha geração trouxe para a mesa do jantar na nossa casa. Pela minha experiência, de ter sido a criança negra que teve de aprender a se proteger silenciada e sozinha, percebo que ela está sendo preparada para esse mundo por pessoas com uma nova consciência racial. Minha irmã, a quem também entrevistei, disse que, como mãe de uma menina negra, as preocupações são muitas.
"O racismo, o preconceito são reais, latentes na nossa sociedade. A minha principal preocupação é que destrua toda a autoestima, tudo de bom e positivo, todo o sentido de igualdade que eu tento incutir na educação dela para que ela saiba o seu lugar enquanto mulher e negra, e que saiba defender os seus direitos. A minha preocupação é que a machuquem emocionalmente e psicologicamente. Porque nós convivemos com pessoas que na infância sofreram discriminação velada ou não e a gente vê uma vida adulta complicada, com baixa autoestima, com problemas psicológicos. (...) Ela é pequena, mas a gente já ensina a ela a esbravejar e se defender."
Cada vez mais desejamos que nossas crianças saibam esbravejar e se defender, mas ao mesmo tempo precisamos que no futuro eles não precisem fazer isso. Precisamos que as próximas gerações de Miguéis, Moniques e Marias sejam vistas como crianças, não como menores, moleques, muito menos "aquela neguinha". As nossas crianças também precisam ser protegidas do trabalho na primeira infância, elas necessitam de carinho, atenção e de reconhecimento como seres fundamentalmente humanos. A linha que liga a desumanização das pessoas negras ao empobrecimento geracional, fruto do sistema escravista, produz corpos negros pequenos que não são sujeitos e nem crianças, mas sim miniaturas de uma classe que não é vista como um ser afetivo, inteligente e importante para a sociedade. Mas nós sabemos da pureza dos nossos ibejis, que cumprem a tarefa de afastar do povo preto da morte.
Referências
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
FARIA, A. L. G. et al. (Orgs.) Infância e pós-colonialismo: pesquisas em busca de pedagogias descolonizadoras. Campinas: Leitura Crítica; Associação de Leitura do Brasil, 2015.
FÓRUM NACIONAL DE PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL (FNPETI). Brasília, 2013.
FREITAS, M. A. O cotidiano afetivo-sexual no Brasil colônia e suas consequências psicológicas e culturais nos dias de hoje. In: Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória e Cultura, v. 5, n. 9, 2011, p.63-68.
FREYRE, G. Casa-grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 2002.
_____. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Global Editora, 2012.
PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
VIEIRA, B. Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares sociais. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2018.
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Monique, 33, é escritora e ativista social.
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