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O silenciamento compulsório e a existência feminina na literatura – artigo


.Texto publicado originalmente no perfil do Instagram da autora


© Unsplash

Rebecca Solnit começa seu livro A mãe de todas as perguntas com um ensaio sobre o silêncio. A história do silêncio, ela diz, está ligada diretamente à história das mulheres. Quando estudamos História, essa com h maiúsculo, não é difícil perceber o apagamento das mulheres, a raridade com que elas aparecem e que, quando aparecem é sempre em uma alusão ou comparação a um comportamento tido como masculino (relacionado à política ou à guerra).


Como ressalta Virginia Woolf, em Um teto todo seu, parece que os homens nascem com essa capacidade de serem melhores do que as mulheres em tudo. Na cozinha, nós somos cozinheiras, eles são chef; na moda, nós somos costureiras, eles estilistas; na escrita eles são universais, nós escrevemos literatura feminina – como se isso fosse algo menor ou mais débil.


No século XVIII, Mary Wollstonecraft elaborou um manual bem didático (Reinvindicação dos direitos da mulher) para explicar aos homens porque era importante que as mulheres tivessem direito à educação. Direito esse que nos foi proibido durante séculos de opressão patriarcal, que não cansa de nos explorar sexual, econômica e intelectualmente. Também na História se demorou a perceber o apagamento das mulheres, não porque elas não existissem, mas porque estavam vivas e ardendo em fogueiras, justamente por não quererem calar.


As representações da mulher na literatura enquanto submissas, frágeis e dóceis, ou no extremo, como astuciosas, ardilosas e vilãs, são transferidas também às escritoras que são lidas ou não conforme sua conduta na sociedade. O que Wollstonecraft, Malala, Cassandra Rios e tantas outras mulheres têm em comum? Foram censuradas por não se enquadrarem em um papel feminino previamente estabelecido pela estrutura machista em que vivemos.


No Brasil, o movimento da literatura marginal, na década de 1970, nos dá a conhecer nomes como Ana Cristina César (lésbica), Hilda Hilst (literatura erótica), Cora Coralina (fora do eixo Rio-São Paulo) e mostra a diversidade da produção literária feminina que fala da condição de ser mulher no mundo com toda a sua complexidade. As narrativas são distintas porque tratam de experiências únicas e não-universais. O sujeito universal é chato e maçante.


Harold Bloom tem um livro conhecido, chamado O cânone ocidental, no qual ele elenca a literatura que deve ser lida para, segundo ele, entender o zeitgeist do ocidente. Para Bloom, o espírito do tempo de uma cultura vastíssima pode ser resumido nos 26 escritores que ele escolheu, dos quais apenas três são mulheres: Jane Austen, Emily Dickson e Virginia Woolf.


No cenário educacional brasileiro, no que diz respeito ao ensino de literatura, por exemplo, temos uma lista de autores que são estudados por alunos e alunas do ensino fundamental e médio dos quais 94,8% são homens e apenas 5,2% mulheres, a saber: Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles, escritoras fantásticas, sem dúvida, mas todas pertencentes a uma classe média, branca e hétero, que é a norma. Ainda que oprimidas pelo fantasma do "anjo do lar" por conta do casamento e da maternidade compulsória, essas mulheres tiveram oportunidade de escreverem, serem publicadas e lidas. Tinham "um teto todo seu", condições para produzir e criar.


E como a exceção só confirma a norma, a gente vê surgir uma Carolina Maria de Jesus vez ou outra, que a despeito de uma existência focada em sobreviver nos dá a conhecer uma narrativa impecável sobre o que é ser uma mulher negra em uma favela no Brasil. E por falar em Carolina, acho imprescindível, falar sobre as escritoras negras que são tão ou mais negligenciadas que as escritoras brancas: Maya Angelou, Toni Morrison, Cynthia Bond, Alice Walker, Conceição Evaristo, Úrsula Firmino dos Reis, para citar algumas. Mulheres que até recentemente eram desconhecidas, mas que produzem desde meados do século XX. É indiscutível, ao meu ver, que nós precisamos conhecer essas autoras, que além de todo o estigma do gênero também sofrem com a questão racial.


Se para ser feminista, como afirmam bell hooks e Djamila Ribeiro, nós precisamos ser antirracistas, afirmo que para falar de literatura feminina nós precisamos ler autoras negras. Ler autoras lésbicas, bissexuais, indígenas, nordestinas e nortistas. Sair do "cânone" é a resposta para encontrarmos um mundo repleto de novas experiências, modos de ver e viver o mundo, de sentir e vivenciar a existência. Ler mulheres é fazer a voz encontrar eco, ler mulheres é lutar contra o silenciamento de nossas histórias.

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Dia Nobre, nascida em Juazeiro do Norte, cariri cearense, é historiadora, escritora e poeta. Tem dois livros publicados na área da pesquisa histórica, O teatro de Deus (2011) e o premiado Incêndios da alma (2016). Atualmente vive em Petrolina (PE), onde trabalha como professora universitária desenvolvendo projetos ligados à literatura, história e feminismo. Prepara para agosto de 2020 o lançamento de seu livro de poesias, Todos os meus humores, pela Editora Penalux.

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