Observações
Não tenho cáries, sempre trabalhei bastante, isso deveria ser o suficiente. Arrancar todas as peles, devastar rostos com meus dentes afiados feito gema de ovo, é uma possibilidade. Estilhaçar meus cantos, minhas sombras laterais, me arremessar de tua janela estrambótica, outra possibilidade. Eu juro que recebi um pouco de educação, o suficiente, eu diria. Engula num suspiro de uma única vez a vez de vida que eu tive em meus pés, como um trago. Meu sangue pode congelar nas veias, minha sombra não estanca nas paredes e portas, ela prossegue, insistente. Estou como um canto de saia esvoaçante que se repete sobre uma vasta mirada, uma espécie de arrancar de peles. Minhas penas, peles e olhos prometiam algo a mais a outras partes de meu corpo, porém faltou um ritmo, um devastar qualquer que tocasse como estratagema minhas veias. Eu escovo os dentes quatro vezes ao dia. Eu me deito, não há recordações, não há meu nome, meus sonhos, meus santos dias, meus golpes de alegria, meus horrores de estar em, de estar sobre algo, de sentir além das esquivas e dos anos traiçoeiros nos quais permaneço em posição de caça. Sobre a impossibilidade do amor, minhas veias tomaram formatos equinos e o coração algo que não pode ser nomeado, talvez recitado com uma velocidade acelerada. O chá não estará pronto a tempo, a comida não estará servida e minha cama estará bastante arrumada mesmo no final. Não amassarei a toalha de linho da mesa de jantar, colocando meus cotovelos sobre, prometo. Não darei trabalho algum a ninguém, prometo. Deixarei a porta trancada e serei silenciosa, como aprendi a ser, sigilosa. Eu sussurro e, por um momento, é quase erótico meu sofrimento, me desculpe por essa observação impertinente. Eu reviro os olhos, sinto meus dedos frios sobre meu corpo, é quase um mistério que o destino seja assim tão estranho e inimigo, insistente, parece que não fui educada o suficiente. Não dançarei mais, não terei mais que ser alimentada, isso será de grande ajuda, garanto, logo-logo, mais economia em tempos sombrios, uma espécie de peles e de rostos devastados se aquecerão das minhas sombras. Talvez haja uma dança lenta neste caminho de aquecimento das marés, mas somente para os próximos meses, essa é a previsão. Alguns poderão ficar com os livros, os sapatos gastos, mas a cama permanecerá arrumada e intocada, eu sou organizada, mesmo sendo suja, fria e manipuladora, eu me viro, darei um jeito para que a sujeira seja a menor possível, afinal, sou apenas uma sombra sobre um edifício qualquer. Procuro sempre ser asseada e não amassar toalhas com meus cotovelos incômodos, tenho boas recomendações, verdade seja dita.
Fogo
Olhar para o fogo, sustentar o olhar do fogo, mirar a mirada do fogo. Não é a inspiração que se sustenta por mais tempo, mas sim a expiração. Brasas, cinzas, estalos de galho seco no seco do quente do fogo. Soltar, voltar, lutar. Na vontade se expira. Redescobrir o ardor, a força, a paixão pelo vento que alimenta o fogo. Mesmo que os tenha perdido: o vento e o fogo. Sobra a teimosia. Caso pense que sabe a resposta, pois não se sabe, desistir não é uma solução. Deitar. Olhar para o fogo, atenta, atento. Não dormir um sono-torpor, dormir um sono-sonho. Esqueça sobre escrever. Obedeça ao chamado da terra, as raízes são como pequenas nervuras entre os dedos, entre os dentes, entre as unhas. É estranho, leve e fluido. A terra é leve e fluida. Estranho, mas é. Acabou o caminho, que seja, vá-se embora. O vento e o fogo estancam a fome e a terra nos faz redescobrir o ardor. A terra arde ao sustentar o olhar do fogo. Mirar a mirada da terra é a expiração de tantos caminhos. A inspiração é atenta ao vento e ao fogo. Olhar é atentar para os perdidos no seco do seco do osso. Não dormir um sono-morte, não ainda. Não lutar sem antes soltar, não voltar sem antes lutar. A teimosia da terra é leve como uma pequena nervura entre a paixão e o sustento. A força demanda tempo, tempo consumido pelo obedecer às raízes que alimentam montanhas, ferros e cascos ao se sustentar o olhar do fogo, olhar para o fogo, mirar a mirada do fogo. No seco se volta, no risco se caminha, no chão se escreve, no sonho não se dorme, na redescoberta se curva o galho seco no seco do vento.
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Ana Thomazini Racy, 30, nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Formada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), estuda e trabalha com Astrologia Tradicional desde 2015, mantendo a página Vespertina Astrologia, com textos pontuados pelo amor fati: assim na Terra como nos Céus. Escreve poesia desde 2003 e começa, em 2015, a rascunhar textos que ora chama de conto ora de prosa, às vezes poética.
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