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Ala 7 – conto

Atualizado: 20 de abr. de 2020


© Larah Vidotto

Além daqueles trinta cadáveres, outros 1.823 corpos foram

vendidos pelo Colônia para dezessete faculdades de medicina do

país entre 1969 e 1980. Como a subnutrição, as péssimas condições

de higiene e de atendimentos provocaram mortes em massa no

hospital, onde registros da própria entidade apontam dezesseis

falecimentos por dia, em média, no período de maior lotação. A

partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando

uma macabra indústria de venda de corpos.

Daniela Arbex


Primeiro vieram uns homens e falaram que a gente tinha que obedecer. Eu não concordava com aquilo, mas ali o pensamento ficava só na cabeça, mesmo porque o corpo, que era só corpo, fazia o que tinha de fazer. Uma velha segurou meu braço com firmeza e me colocou sentada. Olhei para o chão e vi uns tufos de cabelo sem vida. Não que eles tivessem vida nas cabeças, mas no chão estavam mais perto de parecer lixo e coisa morta. Eram pretos, com alguns salpicos de loiro e tufinhos ruivos. Eu amava os cachinhos vermelhos da Sônia. A velha falou:


— Fica parada.


Eu pensei: nem fodendo.


Mas o corpo ficou imóvel. Aí eu ouvi a máquina trrrreeehhmmm e o cabelo caindo, pintando o ladrilho de castanho claro. De repente me bateu um vento gelado na nuca, e não posso dizer que a sensação não era boa. Empurraram-me para fora dali. Coloquei as mãos na cabeça, tentando escondê-la, mas ninguém se interessou por mais uma careca.


Esse era o dia da novidade no Colônia; veja bem, não é que a novidade seja boa, mas a gente inventa coisinhas para o dia passar, para a vida passar mais rápido. Que nem esparadrapo. Mas vida dói mais para sair.


Teve o dia da novidade roupa-no-saco, e todos ficaram animados. A ala feminina estava em festa: tinha gente que nunca tivera uma roupa nova, tinha gente que sequer se lembrava de como era usar roupa. Eu peguei meu saquinho e demorei a abri-lo. Lembrei-me de mamãe no primeiro dia de escola:


— Não vai sujar o sapato, não pisa nas poças.


Ela tinha mania de cuidar. Naquela época éramos nós duas e o medo do Demônio vir. Ele vinha várias vezes durante o dia; hoje ele vem só à noite. Nós combinamos isso, num acordo tácito, dentro da minha cabeça, desde que mamãe se foi. Ele vem à noite, ninguém o vê. Quando acordo com dor de cabeça e espuma no canto da boca, sei que ele veio me visitar. Demoro mais deitada, finjo que estou um pouco enjoada, eles me dão um remedinho amargo. Às vezes perguntam para a Sônia:


— Ela convulsionou?


A Sônia sabe que não é para falar:


— Não vi, não.


E tudo fica bem. Sem choque, sem remédio que faz dormir por dias, sem exame que olha dentro da cabeça.


Cheguei aqui um mês depois que mamãe foi embora. Desfazendo o combinado de que eu iria antes, um ônibus veio buscá-la em cima da calçada. Não foi culpa dela; talvez do motorista ou de Deus, vai saber. Depois que colocaram 47 pás de terra em cima de seu caixão miúdo, tia Olga veio falar:


— Sobrinha, querida. Acho que você pode morar conosco até completar dezoito anos. O que acha?


— Está bem, tia — respondi meio sem querer.


Eu sabia que minha mãe não concordaria com aquilo; ela e Olga nunca foram amigas. Mas a obrigação de família fazia com que aquele convite fosse feito. O medo do Demônio me fez aceitá-lo. E fomos os dois, eu com dezesseis, ele com quinze anos, juntos para a casa da tia Olga.


Em treze dias, ele apareceu trinta vezes. Parecia saber que eu não queria ficar ali. Tia Olga, nos primeiros dois dias, me dispensou uma atenção até então escondida; eu a ouvia falar para as visitas:


— Tadinha. Perdeu a mãe e é tão doente, só tem a mim.


Depois das visitas do Demônio e de uma tia que às vezes fingia não ouvir meus gritos de medo, ela achou por bem me levar para um lugar em que pudessem cuidar de mim melhor.


— É só por um tempo, você sabe que não consigo cuidar de você como sua mãe fazia. Eu tenho tentado, mas os médicos do Colônia têm uma ala especial para casos como o seu. Você fica lá até melhorar.


No primeiro mês, ela veio todo domingo. No segundo mês, domingo sim, domingo não. Depois de seis meses, não a vi mais. Ela disse na última vez:


— Seu tio foi transferido, mas não se preocupe, sempre que viermos à cidade, viremos aqui. E tem as cartas, não deixarei de mandá-las.


Naquela hora o Demônio riu dela e tentou sair de mim. Eu o engoli de volta, desejei boa viagem e fui para a cama deixá-lo sair.


Depois da última visita da tia, eu passei a ser mais uma ali que não era um. Que sequer era um número, estava mais para aquilo ou aquela. Roupas doadas que viraram farrapos. A agendinha que trouxe de casa e cujas linhas se acabaram. Depois passei a escrever acima do que havia sido escrito, fazendo de uma linha duas. Depois pedi um caderno novo. Depois passei a escrever nas paredes e, depois que a loira alta com cabelo de codorna me deu um empurrão, parei de escrever para sempre.


O Demônio vinha às vezes e causava grande comoção no meu setor. Realmente tinha um homem, dr. Não Sei o que Figueiras, que estudava esses casos, embora eu achasse que eu não passava de uma cobaia para os mais variados testes. Foram-me aplicados todos os tipos de exames, mas o que mais me incomodou foi um em que eles faziam o Demônio vir de propósito, com luz strobo nos olhos. Tentavam ler o que ele dizia com aqueles eletrodos que nunca dizem nada além de linhas tortas. Um dia perdi o medo e combinei com ele que nunca mais ele viria durante o dia. Quando sentia que ele estava vindo, deitava, me esforçava para que ele fosse embora, rezava para mamãe. Consegui. Sendo assim, me tornei desinteressante para o dr. Figueiras, e me transferiram para a ala das loucas que não são loucas, ou ala das mulheres que estão aqui porque ninguém as quer mais.


Na ala 7 moram setenta mulheres. Sempre tem uma nova, uma que chegou há pouco e não durará muito tempo também. É difícil ficar. Tem que ter estômago, atender a alguns critérios, tem que ser antes de parecer, o que é difícil. As famílias, quando a consciência reclama, vêm buscar, e muitas de nós acabam trancadas em um quarto dentro de casa, tão solitárias quanto aqui, entre comprimidos e ondas de ressaca alta.


Conheci Sônia, que veio simplesmente porque o marido arranjara uma amante e não sabia o que fazer com a mulher. Coronel do exército, não foi difícil lhe arranjar um lugar no Colônia. Até hoje ouço o choro baixinho de quando ela chegou, os pedidos insistentes para falar com o diretor que nunca vimos e depois os olhos revirando quando lhe aplicavam uma daquelas injeções que deixam o braço roxo por dias. Hoje Sônia passa os dias deitada, esperando o tempo passar, alguém se lembrar, o marido se arrepender. Às vezes ouço sua voz:


— Não vi, não.


E sei que ela viu, que sabe e que se importa. Só que é mais fácil não se importar.


Comecei a sentir que estava perto de ir para fora. Eu tinha 27 anos, e a minha aparência era de 40. Perdi dois dentes da frente, um em cima e um embaixo, numa dessas vezes em que tentei segurar o Demônio dentro de mim. A careca e a magreza não favoreciam, e, depois de uma tentativa malvada de um enfermeiro, que só foi tentativa por causa do Demônio que apareceu e me salvou, passei a achar bom ser feia. Feia e velha. Feia, velha e maluca.


No último dia no Colônia me lembro de passar pela Sônia. Ela tinha urinado e estava com vergonha. Tinha um banco verde de plástico, atrás de uma mesa também verde e também de plástico, e sentada no banco, quase de plástico também, estava Sônia: mijada e envergonhada. As pernas cruzadas tentavam esconder o que ninguém se interessou em olhar: uma marca escura crescendo na bermuda bege e os pingos de urina fazendo tlim-tlim na pequena poça. Ninguém viu, porque ninguém quis ver. As enfermeiras, no seu eterno procrastinar, se arrastavam esperando o turno acabar. As outras pacientes da ala 7 passavam e apenas passavam. Cada um tem um mundo vasto, só seu para dar conta, e isso ocupa toda a atenção que são capazes de criar. Eu vejo, faz parte do meu mundo ver. Porém é como tela de cinema: está na minha frente, quase posso tocar, mas não participo dela.


Nesta manhã eu demorei demais para levantar; a fraqueza depois da visita estava cada vez maior. Quando a enfermeira cabelo-de-codorna pediu para eu olhar para uma luz de lanterna, eu fechei os olhos e vomitei. E a Sônia sentada. A codorna, não se importando com a mancha em sua bermuda, perguntou:


— Ela convulsionou hoje, Sônia?


Pegaram-me pelo braço, colocaram na frente da mulher. Ela olhou para baixo e respondeu quase que de forma inaudível:


— Não vi, não.


— Mentirosa. Mijona e mentirosa! — disse a enfermeira velha.


Sônia se encolheu ainda mais. Quase desaparecendo. Levaram-me; eu deixei, depois de um tempo eu passei a deixar. Não eu-eu, mas meu corpo, que sabe que tem que obedecer. A enfermeira me colocou na maca de metal frio. Quinze eletrodos; os que ficam atrás das orelhas são mais geladinhos. Fecho os olhos, já sei o que eles querem.


Dr. Figueiras entra na sala e dá instruções para a equipe, que parece não o ouvir, embora faça tudo que ele manda. Maquinalmente. Acho que é hoje que eu vou. O Demônio sussurrou essa noite que eu ia. É hoje, e eu já sei. É hoje, e eu deixei um pacote de biscoito maisena embaixo do travesseiro da Sônia.


Carga um. Um tranco. O.k., é assim mesmo. Carga dois. Um tranco ainda maior e, olha, estou em pé agora e vejo o bigode do dr. Figueiras – ele é ridículo. Tranco três e um barulhinho que eu já ouvira algumas vezes. Parada. Ressuscita. Não, hoje eu não volto para vocês.


Ninguém fechou meus olhos, e eu continuei vendo. Tudo bem que eu não estava ali-ali, mas meus olhos ainda poderiam ver alguma coisa. E eu não queria que eles vissem assim, longe de mim. Fechei os olhos com força, eles continuaram abertos. Ficamos ali, eu e os olhos, eu e o corpo magro, eu e o ar com cheiro de mofo. Até que colocaram um pano branco, branquíssimo, um papel em cima em que se lia “Universidade de Minas Gerais”. E eu fui. Eu e a Maria José, que havia sumido um mês antes e ninguém deu conta. Fomos as duas para o Centro Anatômico da UMG. Eles sabiam que minha tia jamais reclamaria o corpo – havia um boato de que eles faturavam uma grana alta com essas vendas. Eu estava achando divertido. Eu e Maria, Maria, meu corpo, nós três, indo para a universidade assim, entrando pela porta dos fundos.


Um homem passou um líquido muito fedorento nos nossos corpos, e eu sentia aquele cheiro nauseante e não podia fazer nada. Sentia o cheiro, mas não sentia o pedaço de gaze passando pelo meu corpo, que àquela altura já estava frio e seco. Igual ao cabelo que eu vira há uns meses sobre o chão de ladrilho. Igual à voz da tia Olga dando tchau pela última vez.


Ficamos lá, no escurinho. Maria dentro de uma caixa, picotada em pedacinhos. Eu ainda inteira. Os olhos abertos. E entrou uma turma, uns rapazes com cara de gente rica, umas meninas medrosas, gente que nem sabia da existência do Colônia. Ou até sabiam. Mas não sabiam como eu, não viam como eu, afinal, eu tinha dois olhos secos e dois olhos que viam além dos outros dois.


Um mais velho se dizia professor e começou a falar de osso, e eu pensei que osso era uma coisa que eu tinha e muito. Todos eles. Saltando por debaixo da pele. Ele pega uma faca. Sinto um frio na espinha, nessa que eu tenho agora, não na que está em cima da mesa, mas é como se fosse naquela. O tal professor passa a mão atrás da minha perna, faz um corte profundo. O corte não sangra. Sinto o corpo todo fibrilar. O coração começa a bater muito forte, e eu, nossa, eu acho que eu vou.


Abro os olhos e vejo o bigode escroto do dr. Figueiras. Não hoje. Ainda não.


_

Viviane Roux (@vivianeroux) é mestranda em Linguística pela UERJ e escreve desde antes de começar a escrever, quando rabiscava histórias que só ela entendia nas agendas da mãe. "Escrever para mim é uma maneira de dar finais diferentes às histórias que eu mesma vivi, de brincar com o tempo, de matar as saudades de quem não está e, sobretudo, de dar à luz algo que precisa sair e incomoda."

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