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Uma poética do escurecimento da folha – poesia


© Unsplash

encharco a página

e não parto da folha em branco

é a folha que se parte em outras

porque é uma página feita

de pedaços (escura e com manchas).


desde meu romance luzia busco por uma poética do escurecimento da folha, como tenho chamado essa ética de aproximação, lugar de fronteira onde luzia foi criada. a pele, a cor, escurecimentos. menino ou menina, um corpo que se narra sempre outro, através das perdas que por algum tempo haviam roubado a coragem de crescer e inventar-se gente.


no curso de extensão de criação literária que dei na UERJ, "olhar, experiência e memória", em diálogo com os silêncios, a pergunta: o que na cidade nos fala, nos vê? viver na escrita, na pele.


ana carolina francisco foi minha aluna de criação literária e quando, como estudante de jornalismo, poeta e apaixonada por filme-documentário, organizou o grupo de estudos "o feminino na literatura" (PUC-Rio), estive lá para falar de luzia e da construção do corpo e da voz nos silêncios. levei a poesia de escritoras negro-brasileiras e a partir desse movimento, em oficina com o grupo que ela reuniu, trabalhamos o gesto da escrita e suas vozes.

volto a esse espaço e me dá ânimo, alma, trazer também outras mulheres. hoje a voz de ana está aqui, em corpo e palavra.

susana fuentes



*


Ave Maria toca no rádio 

E eu tento

Eu tento te entender, Senhora

Eu tento te encontrar 

dentro de mim

O Seu acalento

A Sua morada 

Mas aqui está a dor 

Eu mostro ela a Você 

Eu me ajoelho, Senhora

Como uma amiga me ensinou

Coloco testa no chão

Joelhos dobrados

E assim pertinho do solo

Encostada no berço das cores

Que rasgam silêncio em flores 

Eu penso que escutarei ecos Seus 

Senhora, tem lugar pra mim aqui?

Espero

Espera cor de nuvem sem sol

E espalha

espalho essa neblina em meu tom de pele 

E não sei mais o quanto eu aguento

Ver esse mundo girar

Sem saber 

Se existe lugar pra mim

Ave Maria, Maria que é mãe 

Como a Senhora se ergueu?

Depois que viu o sangue do seu filho

Fecundar terra 

Maria, minha mãe 

Como a Senhora ainda não intercedeu aqui?

Como a Senhora aguenta ver

Tanto filho tombar 

Mãe, eu te peço 

Nos pegue no colo

Porque se não for a senhora

Será esse país que nos colocará pra dormir 

Embalando corpo após corpo

Sem a Sua voz para nos ninar

Ana Carolina Francisco


*


I


o peso infinito

sobre os pulmões

pisa a garganta

que se fecha

a frase ecoa

e se espalha

a plenos pulmões

chega tão perto

mesmo

e o instante

volta e não cala

o peso da noite

o seu grito

baixo

perto

preto

anda pela cidade

pelo asfalto

pelas ruas

em cada pele

que respira

tão frágil e exposta

ouço bem

como respira

e dói e rasga

e isso fere


quero respirar diz a tribo

o peso infinito

sobre os pulmões

museus

escolas

marquises

vidas

periféricas

peles

desse país

que se fecha

pisa a garganta

tapa o grito

que se espalha

na pele

a plenos pulmões

chega tão perto

mesmo


quero respirar

diz o museu e dizem luzias e

galdinos

peso infinito

sobre os pulmões

desta terra

que sangra e queima e não

respira


faltam olhos coração ouvidos

há tantos séculos

não veem

não querem ver

e apertam o gatilho

o botão a garganta

e disparam

em filhos de reis e rainhas

memória e vida e orixás


II


faltam olhos coração ouvidos

há tantos séculos

não veem

não querem ver

e apertam o gatilho

o botão a garganta

e disparam

mas o alvo

nas costas

nas mãos

ao longo dos séculos

era só uma peça de moto

na garupa

era só uma furadeira no terraço de casa

era só um guarda-chuva

e eles não viram

que eu era só uma criança mãe

eles não sabem disso

não querem saber

meu corpo é sempre maior do que eu

até quando te chamo mãe

não sabem que eu sou uma criança e

que eu sinto medo

e que eu sinto

não viram o guarda-chuva

não

não viram a casa

não viram a camisa da escola

não viram

nas costas

nas mãos

era só uma peça de moto

era só uma furadeira

um guarda-chuva

era uma criança, mãe

não sabem disso

meu corpo é sempre maior do que eu

meu corpo é sempre um campo de batalha

e eu sinto medo

eu sinto

Susana Fuentes


_

Susana Fuentes é autora de Luzia, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Escola de gigantes, contos, selecionado no programa “Rio, uma cidade de leitores” na Biblioteca do Professor da SME (RJ). Escreveu a peça teatral Prelúdios, em quatro caixas de lembranças e uma canção de amor desfeito, na qual também atua. Participou de diversas antologias de contos e é doutora em Literatura Comparada pela UERJ.








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