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Um rosto morno é uma folga – release

Atualizado: 18 de jul. de 2020

Palavra bruta refletida no corpo: Anna dos Santos percorre o perímetro da casa e os espaços da cidade como quem viaja para dentro de si, arriscando o atrito com o estanque


"ânsia de futuro/só tenho o título/me falta o poema": essa é a epígrafe de Um rosto morno é uma folga, de Anna dos Santos, poeta fluminense, que lança sua obra de estreia pela Macabéa Edições. Esse abre alas comunica, de forma lacônica, uma das muitas maneiras possíveis de se experimentar a obra: passeando entre o incógnito e a vontade dimensões do fazer poético e mesmo da própria vida. Ao abordar impressões do passado, presente e futuro, Anna trança linhas, por vezes indistinguíveis, de beleza e agonia ao esbarrar com a brevidade do mundo; ou, nas palavras da autora, ao se deparar com o “constatar penoso da impermanência”.


No decorrer da obra são recuperadas inquietações ancestrais tipicamente humanas, transpostas para o papel em versos como "meu ofício é ócio inútil", "nesta cidade tão pacata,/a solidão chega antes de qualquer contentamento", "o amor de esfomeado vai comer tudo o que sou", "uma tristeza de quem definitivamente existe", "tudo o que escrevo é lamento". Um fluxo de percepções ao mesmo tempo melancólicas e instigantes. Reivindicando sua condição de desassossego, Anna afirma querer "ser a poesia corrosiva que estorva o sono do careta" e nos convida a arriscar o atrito com o estanque.


A poeta percorre a casa com os olhos e o corpo de quem sente os detalhes incômodos do perímetro sobressaltados devido à angústia que a solidão traz. A cidade aparece como motor de autorreflexão de sua própria existência enquanto corpo inerte que anseia pelo movimento. Assim, esses dois cenários trocam de lugar. A viagem externa, para fora de si, acontece no ambiente interno e individual, a casa, este universo vasto embora minúsculo que, através de suas paredes, fala, indaga, responde e retruca os questionamentos de um corpo que ocupa os espaços. Já a viagem interna se dá pelos caminhos da cidade, explorados por quem, mesmo com o olhar atento de perambulagens sem compromisso com o relógio, consegue "ver como tudo está cheio de segredos" e espera "o mistério se mostrar". É, portanto, nessa andança que o sujeito e o lugar se encontram no mesmo impasse: conhecer "nunca o que está velado" (dentro de si e do espaço que habita).


Outra particularidade é a sensação de trajetória experimentada, de forma menos metafórica e mais tangível, no que se refere à organização temática discreta dos poemas na composição da obra. Tendo como referências alguns elementos visuais e mesmo textuais, como em "percebo-me acompanhada deste sussurro no ouvido,/que ora me parece uma guerra,/ora me parece um carnaval.", ou em "essa disponibilidade do mundo me impressiona,/quero engoli-la com mais olhos do que tenho,/mas têm me faltado aquelas vísceras.", as interlocuções e transições são relativamente marcadas por toda a obra, sendo a melancolia seu fio condutor. A despeito de sua presença contínua e norteadora, a expressão dessa melancolia e seus atravessamentos, no entanto, são mutáveis.


Num primeiro momento, há uma ideia de pulsão, vitalidade, de busca pelo sentir intensamente, como explicitada em "a sede do copo d’água,/do sexo escancarado,/da mão vagante/e do mistério tímido.". Posteriormente, em construções até bastante categóricas, como "a vida:/o aguardo/do fim.", o diálogo se dá com uma noção de ruína e apatia frente à realidade. Ao final, demonstrando o caráter cíclico e oscilante da vida, é retomada e redescoberta a vitalidade, agora mais serena – "é que a flexibilidade dá movimento,/e eu ainda gosto de dançar".


Anna carrega consigo, nessa obra, a impressão que precede um envelhecimento do corpo quase iminente, detalhe que de imediato nos remete à Florbela Espanca em seu Livro de mágoas, com o jogo poético de referências autobiográficas relacionadas ao sofrimento vivido pela(s) poeta(s), escritas de si. Seja nas palavras de Bianca Gonçalves (Como se pesassem mil atlânticos, 2019) "para que Anna mostre as mãos" –, seja na percepção de Camila Assad (Desterro, 2019) "apesar da melancolia, o poema" , respectivamente autoras do prefácio e da orelha, a relação entre os aspectos poéticos da existência e o corpo que sente o mundo ao redor se evidencia de forma poderosa e preenche os escritos da poeta.



um rosto morno é uma folga | anna dos santos

2020

ISBN: 978-65-990969-2-1

64 p.

R$25,00


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