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Um rosto morno é uma folga: poemas de Anna dos Santos

Atualizado: 20 de mai. de 2020

Para ler durante o isolamento social (e fora dele).


alguma coisa em mim quer desabrochar

acordei com a sensação de

serena

ter subido

montanhas e uma tristeza de quem definitivamente existe, que é quase sempre triste e não sabe viver

não compreendo tanta alegria abundante tudo é caótico e as notícias, bombas atômicas mal-emitidas

o sol vai embora antes das onze, a manhã já não conhece a própria calma, o vento vaga como nós e as aves atordoadas voam no céu

os barulhos se fundem numa só e constante máquina, as pessoas estão sorrindo e eu não posso entender

há centenas de dores nos meus movimentos e sinto um sangue escorrendo de maneira que é interior e não acontece

os sentidos não atingem, a inteligência não apreende... sei que algo vai profundamente mal, mas não se consegue avistar o quê.

*


sempre casas cheias de gente, arredores cheios de ruído, companhias cheias de folia... de repente: nada mais.

eu, que sempre muito falei, agora percebo-me muda, com exceção dos instantes em que me noto falando comigo, ou com as paredes coloridas desta casa.

quando dei por mim, estava só. quando dei por mim, ser só doía. e de tão quieto tudo era gritante.

barulho inquietante, que de tão sutil é silêncio, que de tão perverso é plangente, que de tão raro é cruel.

ah, dor... se soubesse que tu vinhas tão depressa... se soubesse que ardência me trazias... na verdade não fazia nada, só sofria antes da hora, e na hora, talvez, sofresse mais.

ao menos um prêmio de consolação: fossem estas paredes cinza, e não verdes, e não houvesse a língua da luz... esta dor doía mais...

*


sinto uma angústia surgindo, devagar, em meu peito. sutil, elíptica, vem se instalando. desejo tanto que o sol atravesse esta minha janela. posso imaginar o morno em meu rosto se o sol por um instante resolvesse alcançá-lo.

um rosto morno é uma folga. se ao menos recebesse visitas... seria boa anfitriã. se ao menos esse sol batesse em minha porta... mas não, acho que não cessaria tal angústia. em junho até as cidades mais quentes parecem sentir frio. percebo trêmulo o meu corpo solto na cidade e não conheço nunca o que está velado.

as construções, o concreto fresco na calçada, o interior de cada muro.

consigo ver como tudo está cheio de segredos.

me encolher... murchar... esperar o mistério se mostrar a mim.

*


tenho olhado para mim com alguma piedade, e que tragédia é ser capaz de sentir piedade de mim mesma! tenho me sentido nauseada diariamente, consideravelmente triste, miseravelmente só.

todo dia a mesma vida apequenada, o café forte, as horas desperdiçadas, a improdutividade irrefutável.

nesta cidade tão pacata, a solidão chega antes de qualquer contentamento, há sempre a mesma pasmaceira pelas horas, e a periculosidade ainda assim tem sua vez.

emudeci-me repentinamente, e parece que a vida toda agora é a preparação: para quando meu andar for trôpego, para quando minha pele for inteiramente dobradiça, para quando já não puder falar com a voz juvenil.

lamentável ver meu corpo pálido refletido no espelho, sem sedes nem ânsias, apenas marasmo.

espero, corpo meu, que não se acabe assim, inerte.

há de se agigantar por algum canto, alguma hora, depois que esta letargia toda passar...


_

Anna dos Santos gosta de sol e de desbravar caminhos. Por urgência e desassossego, escreve poesia e estuda Filosofia na UFRRJ. Também é livreira na Canto Geral livraria criada em conjunto com dois amigos e DJ residente do Espaço Cultural Casarão, ambos localizados na Baixada Fluminense, onde mora atualmente. Publica Um rosto morno é uma folga este ano, pela Macabéa Edições.

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