morada
Entro nessa casa
mil vezes
já morei aqui
a minha pele lembra de cada espaço
o sofá no canto deste cômodo
a mesa de jantar de frente para a cozinha
tropeço em meus próprios passos
porque você saiu daqui
o quarto azul, o armário branco por que você foi embora?
um vazio perene
por que eu fui embora?
eu morava aqui
como se tivesse nascido entre
essas paredes
o elevador confuso de duas portas
morei aqui mil vezes
e em todas
precisei sair
não pertencia a este
apartamento
me sentia parte
daquilo que nunca teria
morei aqui mil vezes
meus pés chegam ao saguão sozinhos
atravessam o cruzamento
olho aquelas janelas
porque você foi embora
procuro aquelas janelas
porque preciso ir embora
também.
partida
o caminho pra casa
é longo
o caminho de agora
parece engessado
estou presa
estou sufocando.
é longe e meus braços pesam
pesa o corpo
o mundo pesa
às minhas costas
há uma linha de imigrantes
junto comigo
fugindo do agora.
fugiremos, então
e as pernas doem
fugiremos, então
e a voz falha
vamos quebrar
mas o espírito foi antes
vamos fugir
e que sigamos convulsionando.
a casa eu não vejo
o caminho está grudado na sola dos pés
o ocaso atrai para a linha
o descaso retrai para a chegada.
não sinto mais
o caminho
a casa
o que ainda está dentro
se partiu
já não sei mais caminhar.
superfície
sou móvel
ou imóvel?
toda essa superfície parece tão instigante
quanto dela
está disposto a explorar?
metros de pele
de vulcões
pedregulhos
córregos e montanhas
talvez
possa ser também
metros e metros
de concreto
concerto
de LED em fios
eletricidade e artifício
vagões e mais vagões
lutando para se manterem nos trilhos
no fim
no começo
o que você vê é
taco e porcelanato
gesso e tinta descascada
uma porta que se abre para
a cidade que se descortina da sacada
olha pra fora esperando os amigos
quer mostrar os adornos da sala nova
o novo lustre é aquele brinco pesado
que ganhei de aniversário.
_
Úrsula Antunes, formada em Letras, ex-medievalista, professora e revisora, escreve ficção em prosa, tendo publicado em algumas antologias e um livro solo, Queda livre e outros contos (2014). Atualmente se dedica à escrita de poesia e aos estudos de edição.
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