tenho predileção por poemas
que atravessam a paisagem
o quintal na casa da minha avó
era um poema todo escrito de melancolia
as paredes cinzas
quase cobertas com lodo
seu quarto era algo tão solitário
quanto a sua ausência
a cama sempre arrumada
tudo no lugar
como se ninguém dormisse ali há anos
porém, não havia poeira
mas havia sombras
o corredor me acompanhava até a cozinha
junto com um sentimento
tão preenchido de amor e quentura
que às vezes eu achava ser mormaço
seu rosário atravessa o tempo
que atravessa meu corpo
que atravessa a tristeza
que atravessa a certeza
de que esse poema me atravessa
mas permanece
*
seu líquido invade meu corpo
como uma correnteza
o líquido vai se transformando
em grande onda
tsunami
que arrebenta-se em mares
inunda florestas
e proclama liberdade
*
virar-se de costas
e perceber
que dentes, facas e garfos
estão cravados
em você
virar-se de costas
e partir
como se as traições
decepções e mentiras
não estivessem
sendo carregadas
em suas próprias costas
feito uma mochila
ANDRADE, Mika. Poemas obsessivos. Fortaleza. [Edição independente], 2020.
Curadoria de Danuza Lima para a ação Cartografias do afeto.
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