tem uma mancha no meu rosto
de um dia em que eu caí
de bicicleta
com a cara bem grudada
no asfalto
minutos antes
correndo
eufórica
desatenta aos obstáculos:
o rosto carrega acidentes
tem uma pinta na minha testa
apareceu pequenina quando eu tinha oito anos
hoje é grande, marca minha
mas meu pai não teve tempo de me conhecer com ela
e tantas coisas também
em mim
que ele não viu:
o rosto carrega ausências
tem um nariz no meu rosto
grande e presente
que eu já quis não ter
alterar dimensão, ser como alguma coisa
o como, essa conjunção
da vida das pequenas meninas sempre no comparativo
com o inalcançável
hoje aceito, gosto e me reconheço:
o rosto carrega triunfos
tem a minha mãe também no meu rosto
e a mãe da minha mãe
e um tanto mais além nessa sequência
assim, bem na minha cara
a cara misturada das mulheres que me criaram
e das que eu nem pude conhecer:
o rosto carrega memórias
tem nordeste, sudeste, índio, branco e preto no meu rosto
tem brasil na minha cara
esse pindorama controverso
o divino, o maravilhoso e o horrendo:
o rosto carrega histórias
tem tanta coisa no meu rosto
e no rosto de qualquer pessoa
o sol que bate ou que deixa de bater
a vida que acontece toda dentro de uma vida só
que se mistura sempre a tantas
de outros rostos
de onde a gente veio
como a gente anda ou samba por aí
tudo isso
o dito e o não dito
o choro que derrama e o que fica preso, parado bem no
canto do olho
tem no rosto
você no meu
refletido na pupila
e todas as expressões
que o sentimento desenha
junto com as sinapses
tanta coisa e história
no rosto dele
no rosto dela
nos rostos nas ruas
com calma, com pressa
com medo
tanta coisa que você nem vê
que não tá na cara
mas olha
e se espanta
que uma pessoa então não carrega um rosto
antes disso:
um rosto carrega uma pessoa.
*
tenho sido um céu
azul e triste
perdido nas pontas do mundo
a dor que hoje me visita
arde
e tem cheiro de sol
*
quero invadir os quadros de van gogh
gritar que a arte é miserável e destroçar o amarelo.
ser a poeira que dança sob a luz:
partícula, película, ridícula: decadente! vã e imensa
suspensa, mesquinha, vil.
morar junto à sujeira que abriga o canto da unha,
que arranha a carne e maltrata a pele.
andar com os ratos e ruídos aos rastejos.
matar, morrer, dilacerar.
quero ser a poesia corrosiva que estorva o sono do careta,
que trucida o nobre e aniquila o livre.
sangrar assassinando cada poro...
sufocando lentamente pra fazer sair o ar.
_
anna dos santos, autora de Um rosto morno é uma folga, gosta de sol e de desbravar caminhos. por urgência e desassossego, escreve poesia e estuda filosofia na UFRRJ. também é livreira na canto geral – livraria criada em conjunto com dois amigos – e DJ residente do espaço cultural casarão, ambos localizados na baixada fluminense, onde mora atualmente.
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