Os contos integram a obra Desastrada e outros contos breves (2019), publicada pelo Mulherio das Letras. O lançamento acontece em 13 de dezembro (sexta-feira), na livraria Largo das Letras, em Santa Teresa (Rio de Janeiro/RJ), às 18h30min.
Mar
não sei se porque fui criada entre montanhas, deitar os olhos no horizonte é algo que liberta aquilo que anima meu corpo (e alguns chamam de espírito). o mar é berço do horizonte, um berço sem grades em que azuis conversam silentes, enquanto o vento e o sol cuidam do movimento e das cores. gaivotas e fragatas cortam o ar. algumas aves mergulham resolutas saboreando com graça peixes frescos. há a baleia que não vejo, há uma verdade submersa, multicolorida e inteira. corais. tesouros. há, talvez, um navio naufragado. alguém que sucumbiu nesse naufrágio, que escutava chopin e gostava de chá de jasmim. há corpos desovados por autoridades débeis. tudo se tornou outra coisa lá embaixo (até comida para tubarões!). há atuns desfilando em cardumes que jamais serão enlatados e outros que se tornarão comida de gato. há conchas e pérolas que jamais serão encontradas. há bolhinhas produzidas pela boca de um filhote de peixe-espada divertido. há lixo e mais lixo. difícil pousar os olhos num livro diante do mar; perto dele pertenço mais a mim e a uma coisa que não sei exatamente o que é, mas é ampla e tem uma capacidade enorme de expansão. este pertencer é estranho e me iguala aos grãos de areia, que são como corais quando vistos por um microscópio e são incontáveis, ao menos assim me parece. sigo embalada, minhas pupilas são grandes e meus olhos não são mais verdes, pois o mar os devorou. como sei disso? eu simplesmente sei. e há também a lua. e as marés. e um dia após o outro, que torna tudo isso que vejo sempre outra coisa. "isso", ele é.
Patos selvagens, o oráculo e a velha casa
então eu me mudei para a casa nova que, na verdade, era uma velha casa, mas eu gosto do que é antigo, e isso não é de hoje. então vieram os cupins, e o oráculo google me disse: vinagre neles! mas minha vizinha olhou aquilo e sentenciou: você está só temperando os cupins, isso é um teatro! jimo, atacar! e toda uma colônia foi exterminada; uma sociedade de castas, segundo li no site da empresa de pesticidas (sim, aprendi isso agora, não tive essa aula de biologia). então vieram as goteiras, que aqui é o eufemismo em forma de chuva torrencial, e eu não tinha panelas para aquele dilúvio. um bom homem e seu ajudante foram contratados por nós. o serviço ficou uma beleza, mas o assoalho cedeu. casa velha é assim: e houve outra obra, com estampido, quebra-quebra, gato fugindo para o jardim do vizinho, e poeira cósmica. então, num sábado, com uma pilha de trabalhos para corrigir, pois escolhi ser professora, uma senhora me chamou no portão:
"por favor, coloque seu pato para dentro."
"eu não tenho pato!"
"os cachorros vão matá-lo!"
"senhora, eu nunca vi esse animal"
"os carros vão atropelá-lo!"
"senhora..."
abri o portão e tocamos o pato para dentro. mas ele se assustou e voou. era um pato grande, preto, com alguns traços brancos. o google, segundo a foto, disse ser um pato selvagem. que, às vezes, atravessa o pacífico. o oceano. isso. casa velha é assim mesmo, falou minha sogra.
Desastrada
li ontem uma matéria que dizia sobre a amizade de um gato e um rinoceronte. "amizade improvável", dizia a matéria. "absolutamente normal", pensei. e então imaginei um amigo gigante que me carregasse em seu dorso por todo o planeta, um dinossauro, talvez. nesse momento, a Terra, chateada, atordoou-se. julgou-se desvalorizada por minha imaginação infantil. meu corpo, como inúmeros outros corpos, também não habitava sua superfície por uma inexplicável força gravitacional? involuntariamente, pesava sobre ela vaidosos e humilhados, beócios e gente safa. então, a fúria veio, inevitável. houve um terremoto. mas como era uma criação minha, a região devastada foi um lugar onde nunca, ninguém, sequer havia pronunciado meu nome.
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