[Poemas do novo livro, Voltar para casa, no prelo]
sinhá
você me desejava
não tão secretamente
queria que minhas mãos
esfregassem as suas roupas
enquanto seus dedos delgados
de veias azuis saltadas
aparentes
se dedicariam à digitação
de palavras nobres:
uma carta a um órgão burocrático
um artigo científico
ou até
quem sabe
linhas de alta literatura.
escrevo-lhe agora
o que não consegui lhe dizer
diante da sua nudez:
limpe você mesma
a sua própria sujeira
os suores do seu desejo
pervertido
as nódoas de sangue seco
relíquias de família.
minhas mãos
nunca estiveram à venda
em leilão
não são lenha para queimar
não são braços
elas pertencem a mim
e à linhagem de mulheres
que dominam as cantigas
as palavras mágicas
de afogar
e fazer crescer
crianças escuras
veja
de minhas mãos pinga água
que salga
e corta
água que transforma
rocha em areia
olhe para estas mãos
que não vão lavar
a sua
sujeira
nem acalmar
as suas crianças.
*
perto de bertoleza
deixe que eu lhe faça um carinho
e admire a beleza
de seu ventre distendido
amplificado
na esteira fecunda
da pausa
o sono da beleza
bertoleza
no manejo do facão
que abre o ventre
dos peixes
mata para dar a vida
alforria
perfuma o ar
deixe
que eu lhe beije
a boca
senhora
para que nunca mais seja necessário
abrir o próprio ventre
cortar na própria carne
inscrever à força
a liberdade.
Heleine Fernandes é poeta, ensaísta, performer e pesquisadora de Poesia Contemporânea Negra-Brasileira. Finalis-ta do prêmio Jabuti, é autora de nascente (Garupa e Ksa1, 2021) e de A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natá-lia e Tatiana Nascimento (Malê, 2020). Realizou performances comissionadas pelo Museu Bispo do Rosário e pelo Galpão Bela Maré. É professora e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem poemas publicados nas antologias Cult#1, Ato poético: poemas para a democracia (Oficina Raquel), em Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras (Bazar do Tempo e FLUP) e em Versão Brasileira: a voz da mulher (Teatro da Mente/Retomada Cultural RJ, 2023). Tem ensaios publicados em Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (Malê, 2023) e em Falemos de poesia (7Letras, 2023).
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