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sinhá / perto de bertoleza – poesia

[Poemas do novo livro, Voltar para casa, no prelo]

 


Elizabeth Catlett ©

sinhá

 

você me desejava

não tão secretamente

 

queria que minhas mãos

esfregassem as suas roupas

enquanto seus dedos delgados

de veias azuis saltadas

aparentes

se dedicariam à digitação

de palavras nobres:

 

uma carta a um órgão burocrático

um artigo científico

ou até

quem sabe

linhas de alta literatura.

 

escrevo-lhe agora

o que não consegui lhe dizer

diante da sua nudez:

 

limpe você mesma

a sua própria sujeira

os suores do seu desejo

pervertido

 

as nódoas de sangue seco

relíquias de família.

 

minhas mãos

nunca estiveram à venda

em leilão

 

não são lenha para queimar

não são braços

 

elas pertencem a mim

e à linhagem de mulheres

que dominam as cantigas

 

as palavras mágicas

de afogar

e fazer crescer

crianças escuras

veja

 

de minhas mãos pinga água

que salga

e corta

 

água que transforma

rocha em areia

 

olhe para estas mãos

que não vão lavar

 

a sua

sujeira

nem acalmar

as suas crianças.

 

 

 *

 

  

 perto de bertoleza

 

deixe que eu lhe faça um carinho

e admire a beleza

de seu ventre distendido

amplificado

na esteira fecunda

da pausa

 

o sono da beleza

bertoleza

 

no manejo do facão

que abre o ventre

dos peixes

mata para dar a vida

alforria

perfuma o ar

 

deixe

que eu lhe beije

a boca

senhora

 

para que nunca mais seja necessário

abrir o próprio ventre

cortar na própria carne

inscrever à força

 

a liberdade.




Heleine Fernandes é poeta, ensaísta, performer e pesquisadora de Poesia Contemporânea Negra-Brasileira. Finalis-ta do prêmio Jabuti, é autora de nascente (Garupa e Ksa1, 2021) e de A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natá-lia e Tatiana Nascimento (Malê, 2020). Realizou performances comissionadas pelo Museu Bispo do Rosário e pelo Galpão Bela Maré. É professora e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem poemas publicados nas antologias Cult#1, Ato poético: poemas para a democracia (Oficina Raquel), em Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras (Bazar do Tempo e FLUP) e em Versão Brasileira: a voz da mulher (Teatro da Mente/Retomada Cultural RJ, 2023). Tem ensaios publicados em Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (Malê, 2023) e em Falemos de poesia (7Letras, 2023).

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