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Maria de Lourdes Hortas: Relógio d'água – Vertigem

Atualizado: 28 de set. de 2022

Transcrição da resenha do poeta e pesquisador César Leal¹ sobre o livro Relógio d'água (1985), de Maria de Lourdes Hortas², publicada no Diário de Pernambuco em 22 de novembro de 1985, no caderno Panorama Literário


© Hemeroteca Digital
Maria de Lourdes Hortas é autora de uma poesia verdadeiramente lírica, sendo este seu livro, lançado pelas Edições Pirata, um dos melhores aparecidos no Brasil em 1985

Relógio d'água, poemas de Maria de Lourdes Hortas, é uma obra excitante pelo muito que oferece ao leitor no âmbito de experiências liricamente comunicáveis. Trata-se de uma poesia rica em sensações visuais, auditivas e tácteis, elementos que contribuem para a formação de uma variada tipologia de imagens. Há poetas que se caracterizam em seus poemas pelo predomínio de uma determinada sensação, algo identificável pela teoria do efeito, como é o caso de Milton, onde as imagens auditivas – sendo a força predominante – contribuem para aquela música bela, tão louvada por Max Jacob ao falar sobre o "Verso sagrado".


Grandes teoristas deste século – Pound, por exemplo – consideram a "frase musical" como o elemento decisivo na grande poesia, em particular na poesia moderna. Ocorre que, nem sempre, a frase musical afasta do poema outros tipos de imagens. A imagem intensificadora, da classificação de Henry Wells, imagem capaz de revelar o apenas abstrato ou espiritual em forma concreta e com espantosa nitidez, também está presente nessa poesia. O interessante é que o leitor aceita tais "objetos" criados ou gerados pelas palavras como realidades, ainda que sejam reais apenas ao nível da língua poética.


Na maioria dos poemas de Maria de Lourdes Hortas, a imagem visual ou auditiva apresenta um elevado coeficiente de "visibilidade". Isso não quer dizer que eu esteja a defender imagens demasiadamente claras. A clareza poética não deve ser confundida com a clareza intelectual. O necessário é que a imagem tenha eficácia. E terá sempre eficácia se o poeta conseguir mantê-la sob o controle da emoção que a produz ou sua face oposta: a frieza intelectual. A poesia de Shakespeare é boa, mas só aparentemente, o seu universo de imagens está ao alcance de todos os seus leitores. Na realidade, o poeta deve aproximar sua poesia da experiência do leitor, mas não deve com este se confundir, embora ele seja – como se costuma dizer – o primeiro leitor-crítico de seus poemas. Um bom exemplo de criação de imagens poéticas dotadas de eficácia expressiva está neste soneto de Maria de Lourdes Hortas: Quando em vertigem tombo, enluecida desço às cisternas, em seus cristais me cego por desespero a verdade nego apunhalada te apunhalo, vida. Brotam de mim espinhos que aos molhos são desatados pelas incertezas desenterradas desde as profundezas rompendo a flor das águas dos meus olhos. Punhais de amor varando esse gelado aquário de ciúme onde o ciúme arde dentro do peito incendiado. Gritos em brasa, afagos de um cardo: ao se cravarem no amor são vaga-lumes que em se apagando o deixam tatuado.

O poema fala do amor e dos males do amor. As imagens refletem essa situação. Basta observar que as palavras estão dispostas em uma relação de mútua dependência, semanticamente solidárias, "Vertigem", como palavra isolada, não diz mais do que aquilo que literalmente significa. Mas é do sentido formado por "tombo", resultante da "vertigem", que nasce a loucura de que é sinônimo a palavra "enluecida". Enluecida tanto pode sugerir imagens de claridade lunar como de loucura: enluecida desço às cisternas e me cego em seus cristais. A verdade é negada pelo desespero e o amor é o bem que apunhala o agente da ação de amar, que por sua vez, apunhala a vida.


O elemento musical está intensificado pelos seus componentes formais, inclusive o ritmo e seu instrumento especializado: o metro. No caso, o metro é o decassílabo, com exceção do 13º verso que tem onze sílabas. Isso deve ter sido feito intencionalmente, pois "gritos" e "afagos" não exigem do verbo no plural ("cravarem") uma vez que na poesia da modernidade, o insólito recomendado por Mallarmé manda que se utilize verbos em infinitivo absoluto, particípios empregados ao modo do abalativo absoluto latino, inversões gramaticais que não se possa justificar linguisticamente, supressão da diferença entre singular e plural, emprego do advérbio como adjetivo, alteração da ordem normal das palavras, artigo indefinidos com a função dos artigos definidos e outras construções "fora da lei". O soneto está rigorosamente rimado. As rimas além de marcar suas funções musicais, registram o fim de cada período rítmico, acentuando os aspectos auditivos da composição.


Não há dúvida de que o poema inteiro forma uma imagem auditiva. Mas essa imagem foi constituída pela soma de outras imagens geradas pelos componentes sonoros espalhados pelo interior do soneto. Ao lado das imagens auditivas, estão as visuais: "tombo-vertigem", mergulho nas cisternas, cristais, cegueira, punhais, lutas contra a vida, espinhos que, desenterrados desde as profundezas, brotam do corpo aos molhos, rompendo a flor das lágrimas, símbolo do sofrimento amoroso. "Punhais de amor" estão aqui em analogia com "espadas de ânsia" do poema "estátua falsa", de Mário de Sá Carneiro. As imagens de gelo e fogo também estão presentes. A isso chamamos união da experiência do poeta à experiência do leitor. O leitor, como o poeta, sabe o que é "fogo", "gelo", substâncias concretas. Daí compreender, pelo menos parcialmente, o que é "gelado aquário", "peito incendiado", "gritos em brasa", os espinhos do cardo, ao se cravarem no corpo que ama se transformam em vagalumes que, à medida em que vão se apagando, deixam marcas permanentes (tatuagens) que não poderão ser extintas sem dor.


Maria de Lourdes Hortas é autora de uma poesia verdadeiramente lírica, sendo este seu livro, lançado pelas Edições Pirata, um dos melhores aparecidos no Brasil em 1985.


Um exemplo desse lirismo puro:


PORQUE sou de terra preciso de chuva e para ser verde eu tenho sede. Para concluir esse breve registro, outro exemplo que me parece bastante expressivo:

FELINA por te amar esta vertigem se espreguiça virgem em meu corpo.


¹ César Leal foi autor de mais de trinta livros de poesia, conto e crítica literária, publicados por grandes editoras do País. Também atuou no Diário de Pernambuco, onde dirigiu um suplemento literário por mais de quarenta anos, e na revista "Estudos Universitários", da UFPE, do qual foi editor de 1966 a 2005, divulgando o trabalho de diversos poetas da chamada Geração 65.


² Maria de Lourdes Hortas nasceu em Portugal e aos dez anos veio para o Recife (PE), Brasil. Poeta e ficcionista premiada, participou de várias coletâneas. É ativista literária: fez parte da coordenação das Edições Pirata; organizou a antologia Palavra de mulher (1979); durante vinte anos, foi Diretora Cultural do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, onde editou a revista "Encontro". Além disso, também atua nas artes plásticas. Romaria, sua coletânea poética, está em pré-venda, com 15% de desconto, pela Macabéa Edições.






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