dança comigo
escorre súbita pelas nossas mãos
não, não há vida depois de nós
fode comigo seu ódio
goza na cara deles
agora
o assombro faz tocaia
pela janela da sala
Silêncio, voz e profecia. E não estou sozinha através de telas frias. De Daniela, o espanto desfalecido. De Fatima, não há depois. De Giovanna, o urro. De Juliana, o assombro. De Leila, a distância. À distância, todas nós e ela toda, que dança, rodopia, isola e escandaliza. Seis faces dela, e por ela, afinal, estamos.
_
o tempo
se alastrou
mole
plácido
no chão do quarto
e no ar pueril
o contágio
dançou
alado
as ilusões mecânicas
de um mundo
à beira
fluem roucas
até o ralo
e não há máquina
que capture a morte
que nos encara
da janela
da torneira
lúcida
esquiva
traiçoeira
doce
súbita
lado avesso
da vida
escorre pelas mãos
unguento vivo
de sangue
e poesia
se derrama
dengosa
mas não se demora
passa
como tudo
passa
e fica
ponta afiada
de faca
a um suspiro
do arrepio
do assombro
não nos esqueçamos jamais
pois que é
do espanto
que se faz um corpo
Daniela Cassinelli
*
não há
não, não há vida após a morte: só há paisagens mudas do mar, talvez um feixe de magnólias atirado às ondas, talvez a palavra “zarpa” – forçada a fugir – para inverter a boca de quem fala. não, não há vida após a morte: o sol não mais ilumina, porque o antúrio passa a ser o silêncio natural de todas as plantas, porque não se pode sair das plantas por meio das plantas. não se pode sair debaixo de um céu antigo por meio do céu. não, não há vida após a morte, porque não se pode sair da vida 1 minuto antes da morte.
Fatima Pinheiro
*
É preciso que se diga Diante dos corpos Em nome dos mortos “Eu quero a morte do genocida” Foda-se tua sombra agora Foda-se teus bons modos Aprendidos nos bons bairros Dos bons shoppings Das boas cidades Diante de amigos e lugares comuns Foda-se os bons poemas Os poemas de esperança Diante dos corpos incinerados Dos corpos empilhados Em pistas de gelo Manda o genocida e sua prole Engolirem a própria merda O próprio esgoto Enfia narizes, bocas, mucosas no meio das fezes, na carne dos cadáveres Aprende como cheira a morte Aprende a mandar tomar no cu Aprende a não ter medo do que sai da tua boca Se teu compromisso é com a vida Olha de frente o puto Olha de frente o mal
O mal tem nome hoje Dança sobre a laje Honra teus mortos Coloca na boca E nas mãos a raiva dos que nos trouxeram aqui Tua boa educação, teus bons poemas Fode com eles Goza com eles Mostra pros amigos Os mesmos Mas aprende Tua falta de ódio é flacidez Do músculo cardíaco
Giovanna Dealtry
*
Comuns
Assombra-me a distância do extraordinário O sonho revogado A rotina miserável O tempo perdido com o banal Assombra-me a mediocridade Que à porta bate E se a gente não abre
Faz tocaia na esquina Assombra-me gastarmos a vida Dentro de dias comuns
Juliana Valentim
*
Edifício Líbano II
pela janela da sala a cada manhã olho sem pressa os jardins do Líbano –
tento juntar os nomes que sei às árvores que vejo
ipê? araucária? jequitibá?
em vão
onde o cedro- -do-Líbano?
talvez sua sombra proteja minha amiga de Beirute que nos anos oitenta desenhava minúsculos retratos enquanto sofria à distância por seu país em guerra –
gostaria de lembrá-la é urgente que saiba atravessaremos o deserto nos próximos dias
respire fundo, tome fôlego é quase hora de deixar o Egito
sem sair deste Líbano em Copacabana.
Leila Danziger
*
sou fado tento me equilibrar entre o mar de melismas nado à superfície e afundo
quebro nua no movimento das ondas subo e desço vou e volto sufoco há algo nas cartas eremita é ao que estou fadada é foda é claro me fode vibro da garganta às pontas dos dedos de dentro das coxas à além-vulva fardo e mistério navegam em mim derramam de mim destina-se a mim sou silêncio sou voz e sou profecia
Mariana Xavier
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Mariana Xavier é mulher, mãe e gente. E leão. Enquanto corre pelas ruas da cidade, apresenta-se professora historiadora especialista em gênero e sexualidade. Fitogente de quase 30. Mas é mesmo mulher, mãe e gente. E leão. Em 2017, publicou seu primeiro livro, Ínfimo, pela Macabéa Edições.
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