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Poemas da quarentena #3

Atualizado: 8 de set. de 2020


A ação é inspirada na iniciativa de mesmo nome de Simone Brantes e Heleine Fernandes, que estão reunindo, no perfil da primeira no Facebook, poemas sobre e para ler na quarentena. No blog da Macabéa, o recorte é de autoria de mulheres.


agora é a formiga a me observar ela carrega até cem vezes seu peso não segue linhas retas anda aos bandos tropeça se alguém ou algo atravessar seu caminho ela se perde do cheiro das outras formas formigas (...) agora sou eu a involução da formiga. Carla Diacov

O tempo sombrio e nublado que hoje nos assombra envia um breve recado: é preciso olhar para a casa. Olhar os detalhes, a sujeira posta debaixo do tapete nos dias de rotina intensa, olhar as infiltrações na parede e perceber os espaços entre os cômodos; visitar os vãos dos móveis, contemplar a estante, o vaso de plantas, o teto. Percorrer a casa é percorrer o mundo que agora só é visitado constantemente pela janela, esta janela que hoje parece pequena demais, uma fresta que faz uso do sol em doses homeopáticas. A casa é agora o bairro, a cidade, o lugar habitável para os que têm senso da realidade, e para aqueles que não são jogados ao trabalho presencial pelo capitalismo desenfreado e cruel, por um presidente que pisa na massa e que, mesmo assim, nunca vira pó. Sabemos muito bem quem são os resguardados no trabalho home office e os que são impedidos de se isolar. A barriga ronca e o auxílio não chega, atrasa, em análise, em análise, em análise.


Com as diferenças de classe ressaltadas em lupa, parece impossível lidar com a criação literária. Por isso, durante muitos dias deste novo e distópico mundo, a inércia surge feito uma almofada leve e macia. Abraçar o silêncio é também uma forma de existência, a ausência de voz também quer dizer algo. Estranhar a produtividade vendida de graça a todo custo num momento inédito na era contemporânea faz parte dessa reflexão. Danielle Magalhães escreveu em seu Facebook que “ao fim da quarentena/provavelmente [será] a única/poeta que não escreveu/nenhum poema”, mas acredito que o silêncio, ou o balbucio, é também um poema, sobretudo nos dias em que poucas vozes soam em nossos ouvidos. A arte não é um bote salva-vidas, mas faz parte de nossa existência enquanto seres que contemplam e refletem o que está à frente de nossos olhos. Acredito que por aqui, entre nós, nas redes, a palavra bruta ora surge, ora desaparece. Ode ao tédio daquele “que abre portas,/que puxa válvulas,/que olha o relógio,/que compra pão às 6 horas da tarde,/que vai lá fora,/que aponta lápis,/que vê a uva”.¹


_


Angústia


a iluminação da rua está diferente, os postes estão levemente acesos,

parecem abajures

gigantes, é como se agora a rua tentasse

ser uma extensão das nossas casas,

minimizando, solidária, o seu Mistério

só pra diminuir

a nossa dor.

me lembrei dos tempos de escola

quando chovia

Tempestade

e nós ficávamos dentro da classe fazendo aula de educação física

no mesmo lugar onde minutos antes fizemos uma prova de matemática

e horas antes

escrevemos uma redação sobre nossas avós,

suores diferentes

se misturam

também o suor do medo

de trovão, eu tinha, achava que era Deus

quando bravo

o sinal batia

para o recreio:

ninguém se movia, sabíamos que não podíamos nos mover.

a professora tentava

nos acalmar cantando

o hino

do colégio

enquanto abríamos

nossas lancheiras

no mesmo lugar onde minutos antes fizemos uma série

de polichinelos

horas antes

uma prova

de matemática

e ainda

uma redação sobre nossas avós.

acontece que

conforme a Chuva não passava

cada uma dessas tarefas iam perdendo a importância em nossos corações aflitos,

já o Pátio

inalcançável (como? se ontem mesmo corríamos por ele despreocupadamente)

o Pátio

só crescia diante da janela.

Aline Bei

*


C19


eu não tenho nenhuma ideia para adiar o fim do mundo eu não quero ver a queda do céu no novo tempo do mundo no tempo das incertezas das emergências das virulências no tempo de fim de viver esse fim dos tempos


Carla Rodrigues

*


cárcere barulho de obra silêncio hospitalar o dia ensolarado acena no final do corredor a seis leitos de distância pernas desequilibradas não ousam tocar o chão o mato descuidado consola os doentes que rondam o pátio me faz crer que estou aqui largada às traças às cobras noturnas de barriga cheia sentadas na cadeira de repouso a água potável da cedae sonho distante e de mau gosto assim como o perímetro que percorro incessantemente à procura de rejuntes e janelas.


Bianca Garcia


*


Epitáfio saudade saúda de vida a morte

Elaine Pauvolid


*


A areia é quente, e há um protetor que eles passam nas costas, e nada protegem. Propagam. Ninguém é inocente no Leblon ou em Copacabana.

Masé Lemos


*


Epidemia


Que explode o peito em pedras de gelo E derrete como calotas polares Na frieza do meu quarto vazio No calor do meu corpo inflamado Da ira dos malfeitores Ao luto na contagem dos corpos Nas valas comuns de uma epidemia Terra que há de engolir a todos Democraticamente E sem qualquer preconceito De sexo, raça ou credo Mas quando a terra inflama É que se separa Quem é feito de carne De quem é feito de lama

Maya Falks


¹ Manoel de Barros.


_ Bianca Garcia é diretora editorial da Macabéa Edições, pós-graduanda em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e revisora freelancer quando os bons ventos permitem. Arrisca-se, também, a fazer a palavra acontecer por meio de poemas.

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