agora é a formiga a me observar
ela carrega até cem vezes seu peso
não segue linhas retas
anda aos bandos tropeça
se alguém ou algo atravessar seu caminho
ela se perde do cheiro das outras formas formigas
(...)
agora sou eu a involução da formiga.
Carla Diacov
O tempo sombrio e nublado que hoje nos assombra envia um breve recado: é preciso olhar para a casa. Olhar os detalhes, a sujeira posta debaixo do tapete nos dias de rotina intensa, olhar as infiltrações na parede e perceber os espaços entre os cômodos; visitar os vãos dos móveis, contemplar a estante, o vaso de plantas, o teto. Percorrer a casa é percorrer o mundo que agora só é visitado constantemente pela janela, esta janela que hoje parece pequena demais, uma fresta que faz uso do sol em doses homeopáticas. A casa é agora o bairro, a cidade, o lugar habitável para os que têm senso da realidade, e para aqueles que não são jogados ao trabalho presencial pelo capitalismo desenfreado e cruel, por um presidente que pisa na massa e que, mesmo assim, nunca vira pó. Sabemos muito bem quem são os resguardados no trabalho home office e os que são impedidos de se isolar. A barriga ronca e o auxílio não chega, atrasa, em análise, em análise, em análise.
Com as diferenças de classe ressaltadas em lupa, parece impossível lidar com a criação literária. Por isso, durante muitos dias deste novo e distópico mundo, a inércia surge feito uma almofada leve e macia. Abraçar o silêncio é também uma forma de existência, a ausência de voz também quer dizer algo. Estranhar a produtividade vendida de graça a todo custo num momento inédito na era contemporânea faz parte dessa reflexão. Danielle Magalhães escreveu em seu Facebook que “ao fim da quarentena/provavelmente [será] a única/poeta que não escreveu/nenhum poema”, mas acredito que o silêncio, ou o balbucio, é também um poema, sobretudo nos dias em que poucas vozes soam em nossos ouvidos. A arte não é um bote salva-vidas, mas faz parte de nossa existência enquanto seres que contemplam e refletem o que está à frente de nossos olhos. Acredito que por aqui, entre nós, nas redes, a palavra bruta ora surge, ora desaparece. Ode ao tédio daquele “que abre portas,/que puxa válvulas,/que olha o relógio,/que compra pão às 6 horas da tarde,/que vai lá fora,/que aponta lápis,/que vê a uva”.¹
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Angústia
a iluminação da rua está diferente, os postes estão levemente acesos,
parecem abajures
gigantes, é como se agora a rua tentasse
ser uma extensão das nossas casas,
minimizando, solidária, o seu Mistério
só pra diminuir
a nossa dor.
me lembrei dos tempos de escola
quando chovia
Tempestade
e nós ficávamos dentro da classe fazendo aula de educação física
no mesmo lugar onde minutos antes fizemos uma prova de matemática
e horas antes
escrevemos uma redação sobre nossas avós,
suores diferentes
se misturam
também o suor do medo
de trovão, eu tinha, achava que era Deus
quando bravo
o sinal batia
para o recreio:
ninguém se movia, sabíamos que não podíamos nos mover.
a professora tentava
nos acalmar cantando
o hino
do colégio
enquanto abríamos
nossas lancheiras
no mesmo lugar onde minutos antes fizemos uma série
de polichinelos
horas antes
uma prova
de matemática
e ainda
uma redação sobre nossas avós.
acontece que
conforme a Chuva não passava
cada uma dessas tarefas iam perdendo a importância em nossos corações aflitos,
já o Pátio
inalcançável (como? se ontem mesmo corríamos por ele despreocupadamente)
o Pátio
só crescia diante da janela.
Aline Bei
*
C19
eu não tenho nenhuma ideia para adiar o fim do mundo eu não quero ver a queda do céu no novo tempo do mundo no tempo das incertezas das emergências das virulências no tempo de fim de viver esse fim dos tempos
Carla Rodrigues
*
cárcere barulho de obra silêncio hospitalar o dia ensolarado acena no final do corredor a seis leitos de distância pernas desequilibradas não ousam tocar o chão o mato descuidado consola os doentes que rondam o pátio me faz crer que estou aqui largada às traças às cobras noturnas de barriga cheia sentadas na cadeira de repouso a água potável da cedae sonho distante e de mau gosto assim como o perímetro que percorro incessantemente à procura de rejuntes e janelas.
Bianca Garcia
*
Epitáfio saudade saúda de vida a morte
Elaine Pauvolid
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A areia é quente, e há um protetor que eles passam nas costas, e nada protegem. Propagam. Ninguém é inocente no Leblon ou em Copacabana.
Masé Lemos
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Epidemia
Que explode o peito em pedras de gelo E derrete como calotas polares Na frieza do meu quarto vazio No calor do meu corpo inflamado Da ira dos malfeitores Ao luto na contagem dos corpos Nas valas comuns de uma epidemia Terra que há de engolir a todos Democraticamente E sem qualquer preconceito De sexo, raça ou credo Mas quando a terra inflama É que se separa Quem é feito de carne De quem é feito de lama
Maya Falks
¹ Manoel de Barros.
_ Bianca Garcia é diretora editorial da Macabéa Edições, pós-graduanda em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e revisora freelancer quando os bons ventos permitem. Arrisca-se, também, a fazer a palavra acontecer por meio de poemas.
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