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Foto do escritorFernanda Vieira

Poemas da quarentena #2

Atualizado: 26 de abr. de 2020


A ação é inspirada na iniciativa de mesmo nome de Simone Brantes e Heleine Fernandes, que estão reunindo, no perfil da primeira no Facebook, poemas sobre e para ler na quarentena. No blog da Macabéa, o recorte é de autoria de mulheres.

Poemas de (r)existência

Uma pandemia é tragédia que afeta pessoas de formas diferentes. Mas, em mim e em muitas e muitos Indígenas, ela acorda traumas geracionais, pois somos sobreviventes das guerras biológicas da conquista. Somos sobreviventes, somos o futuro da nossa ancestralidade. Nós não somos povos conquistados. Tenho feito o caminho de volta há alguns anos, buscando minha identidade roubada e interrompida pela colonialidade, e esse momento de recolhimento me trouxe à pele memórias que carrego no corpo. Meu corpo é um mapa de histórias silenciadas e, aqui, trago um pedacinho desse nós que carrego.


De vários lugares chegam notícias de quem se espanta com a presença da natureza nas cidades. Pessoas afirmando que nós, humanos, somos o mal do mundo. Enquanto pensarmos que nós somos o vírus, jamais seremos a cura da terra. Precisamos assumir a responsabilidade de suspender o céu e adiar o fim do mundo. Vivemos em uma terra emprestada das gerações futuras. O momento pede que pensemos que mundo devolveremos para elas. Tenho no peito a esperança de que nada será como antes e trago nos pés a vontade de caminhar em um novo mundo possível. Espero que você esteja bem e que atravessar este momento te germine uma consciência renovada. Que, mais do que para pensar e escrever a quarentena, você a aproveite para pensar e escrever um futuro não ocidentalizado.


Com isso em mente, selecionei poemas que falam da força e resistência Indígenas, palavras nascidas de mulheres guerreiras. Palavras que carregam ancestralidade. Palavras de urucum e jenipapo.


_


Coração na aldeia, pés no mundo


[...]


Agradeço a Tupã

Por me guardar e inspirar.

Ao meu povo Tabajara,

Pela vida me ensinar.

Se você é como eu,

Sofre ou antes sofreu,

Não desista de lutar


Esta é minha história,

Tenho muito pra contar.

Feliz eu serei um dia

Se o preconceito acabar.

Letras são meu baluarte,

Revelo com minha arte

Um Brasil a conquistar.


Auritha Tabajara

Instagram: @ita.tabajara.

Facebook: Ita Tabajara.


*


Eu não sou sua princesa

Lixa entre duas culturas que rasgam

uma a outra Eu não sou

um meio pelo qual você pode alcançar compreensão espiritual ou sequer

aprender a trabalhar com miçangas

Eu só estou disposta a te dizer como fazer pão frito

1 xícara de farinha, colher de sal, colher de fermento em pó

Mexa Adicione leite, água ou cerveja até que fique firme

Molde cada parte em bolas Deixe descansar

Frite em gordura quente até dourar

Isso é comida de Índio

somente se você souber que Índio é uma palavra do governo

que não tem nada a ver com nossos nomes para nós mesmas

Eu não vou cantar para você

Eu não admito nenhuma espiritualidade para você

Eu não vou suar com você ou aliviar sua culpa com belos contos de tartaruga

Não vou usar roupas de dança para ler poesia ou

explicar praticamente nada

Eu não acho que suas tentativas de nos entender vão funcionar então

Prefiro que você nos deixe em qualquer paz que ainda possamos

arranjar depois de tudo o que você continua fazendo

Se você me enviar mais um maldito folheto sobre como curar a mim mesma

por $ 300 com aconselhamento feminista especial

Eu provavelmente vou atear fogo em algo

Se você me disser mais uma vez que sou sábia, vomitarei em você

Olhe para mim

Veja minha confusão solidão medo preocupação com todas as nossas

lutas para manter o pouco que resta para nós

Olhe meu coração não suas fantasias Por favor, nunca mais

me fale novamente sobre sua tataravó Cherokee

Não presuma que conheço pessoalmente todas as outras Ativistas Nativas

no mundo Que eu sei nomes de todas as tribos

ou posso pronunciar nomes que nunca ouvi

ou que sou especialista no ponto peiote

Se você alguma vez

me disser novamente

quão forte eu sou

Vou me deitar no chão & gemer para que você veja

finalmente minha fraqueza humana como a sua

Eu não sou forte Eu estou em pedaços

Sou abençoada com a vida enquanto muitas que conheci estão mortas

Eu tenho trabalho a fazer louça para lavar uma casa para limpar

Não há mágica

Veja minhas simples mãos rachadas que lavam as mesmas coisas que

você lava Veja meus olhos escuros de medo em uma casa sozinha

tarde da noite Veja que sentir pena de mim ou me adorar

são as mesmas coisas

1 xícara de farinha, colher de sal, colher de fermento em pó, líquido para dar liga

Lembre-se, esta é apenas a minha receita Existem muitas outras

Me deixa descansar

aqui

finalmente

Chrystos

Título original: “I am not your princess”. Tradução de Fernanda Vieira.


*


Identidade indígena

Em memória de meus avós, escrito em 1975

(versão indígena)

Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!

Mas caio da vida e da morte

E range o armamento contra nós.

Mas enquanto eu tiver o coração acesso

Não morre a indígena em mim e

E nem tampouco o compromisso que assumi

Perante os mortos

De caminhar com minha gente passo a passo

E firme, em direção ao sol.

Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro

Carrego o peso da família espoliada

Desacreditada, humilhada

Sem forma, sem brilho, sem fama.

Mas não sou eu só

Não somos dez, cem ou mil

Que brilharemos no palco da História.

Seremos milhões, unidos como cardume

E não precisaremos mais sair pelo mundo

Embebedados pelo sufoco do massacre

A chorar e derramar preciosas lágrimas

Por quem não nos tem respeito.

A migração nos bate à porta

As contradições nos envolvem

As carências nos encaram

Como se batessem na nossa cara a toda hora.

Mas a consciência se levanta a cada murro

E nos tornamos secos como o agreste

Mas não perdemos o amor.

Porque temos o coração pulsando

Jorrando sangue pelos quatro cantos do universo.

Eu viverei 200, 500 ou 700 anos

E contarei minhas dores pra ti

Oh! Identidade

E entre um fato e outro

Morderei tua cabeça

Como quem procura a fonte da tua força

Da tua juventude

O poder da tua gente

O poder do tempo que já passou

Mas que vamos recuperar.

E tomaremos de assalto moral

As casas, os templos, os palácios

E os transformaremos em aldeias do amor

Em olhares de ternura

Como são os teus, brilhantes, acalentante identidade

E transformaremos os sexos indígenas

Em órgãos produtores de lindos bebês guerreiros do

futuro

E não passaremos mais fome

Fome de alma, fome de terra, fome de mata

Fome de História

E não nos suicidaremos

A cada século, a cada era, a cada minuto

E nós, indígenas de todo o planeta,

Só sentiremos a fome natural

E o sumo de nossa ancestralidade

Nos alimentará para sempre

E não existirão mais úlceras, anemias, tuberculose.

Desnutrição

Que irão nos arrebatar

Porque seremos mais fortes que todas a células

cancerígenas juntas

De toda a existência humana.

E os nossos corações?

Nós não precisaremos catá-los aos pedaços mais do chão!

E pisaremos a cada cerimônia nossa

Mais firmes

E os nossos neurônios serão tão poderosos

Quanto nossas lendas indígenas

Que nunca mais tremeremos diante das armas

E das palavras e olhares dos que "chegaram e não foram".

Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal!

E te direi identidade: Eu te amo!

E nos recusaremos a morrer,

A sofrer a cada gesto, a cada dor física, moral e espiritual.

Nós somos o primeiro mundo!

Aí queremos viver pra lutar

E encontro força em ti, amada identidade!

Encontro sangue novo pra suportar esse fardo

Nojento, arrogante, cruel...

E enquanto somos dóceis, meigos

Somos petulantes e prepotentes

Diante do poder mundial

Diante do aparato bélico

Diante das bombas nucleares.

Nós, povos indígenas,

Queremos brilhar no cenário da História

Resgatar nossa memória

E ver os frutos de nosso país, sendo divididos

Radicalmente

Entre milhares de aldeados e "desplazados"

Como nós.


Eliane Potiguara


*


Autobiogeografia

Eu não falo só

Minha voz é composta pelas vozes

Das minhas ancestrais

Dos meus ancestrais

Que se encontram guardados no tempo

E em mim

Esse é o meu tempo

Ixé aiku iké

E todas e todos seguem comigo

Cada palavra que deixa minha boca,

Cada linha que encosta no papel

E conta minha história

É topografia da minha alma

que me reposiciona no mundo

Se rapé puku

Eu não escrevo só

Eu não existo só

A palavra e a caneta pesam

Com a trajetória de quem veio antes de mim

Para que eu chegasse até aqui e pudesse carregar comigo

Todos os passos que foram dados até ontem

Eu sou o hoje da minha ancestralidade

O tempo é tecido de mistério

Iandé iaiku

Nos embaralhamos nas suas tramas e

Compomos o cosmos e o topos

Em uma cosmografia

Autobiográfica

E coletiva

Uma autobiogeografia

Fernanda Vieira

Instagram: @vieirafell.


*


Tartaruga, grafismo Potiguara. Representa coletividade.

Iasypitã Potiguara Instagram: @iasypotiguara. Facebook: Iasypitã - Nas Pegadas dos Potiguara.


*

União dos povos

Nós, povos indígenas

Habitantes do solo sagrado

Mesmo sem nossa aldeia

Somos herdeiros de um passado.

Buscamos manter a cultura

Vivendo com dignidade

Exigimos nosso respeito

Também vivendo na cidade.

Somos parte de uma história

Temos uma missão a cumprir

De garantir aos tanu muariry

Sua memória, seu porvir.

Vivendo na rytama do branco

Minha uka se modificou

Mas a nossa luta por respeito

Essa, ainda não terminou.

Pela defesa do que é nosso

Todos os povos devem se unir

Relembrando a bravura

Dos Kambeba, dos Macuxi

Dos Tembé e dos Kocama

Dos valentes Tupi-Guarani.

Assim, os povos da Amazônia

Em uma grande celebração

Dançam o orgulho de serem

Representantes de uma nação

Com seu canto vêm dizer:

Formamos uma aldeia de irmãos.

Marcia Wayna Kambeba

Instagram e Youtube: Marcia Kambeba.

Facebook: Marcia Wayna Kambeba.


Obras mencionadas:

CHRYSTOS. Not Vanishing. Vancouver: Press Gang, 1988.

KAMBEBA, Marcia Wayna. Ay Kakyri Tama: eu moro na cidade. São Paulo: Pólen, 2018.

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.

TABAJARA, Auritha. Coração na aldeia, pés no mundo. Ilustrações de Regina Drozina. São Paulo: Uk'a Editorial, 2018.


_

Fernanda Vieira é corpo (sub)urbano indigenodescendente, de origem Xokó e com suas raízes paternas em Aracaju (SE). Escritora, poeta, tradutora, doutoranda, pesquisadora em Estudos de Literatura pela UERJ com bolsa FAPERJ e membro do GRUMIN (Grupo Mulher - Educação Indígena). Publicou Crônicas ordinárias, sua primeira obra de ficção, em 2017, pela Macabéa Edições. No momento, é Visiting Scholar na Boston University com bolsa FAPERJ.


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