Poemas de (r)existência
Uma pandemia é tragédia que afeta pessoas de formas diferentes. Mas, em mim e em muitas e muitos Indígenas, ela acorda traumas geracionais, pois somos sobreviventes das guerras biológicas da conquista. Somos sobreviventes, somos o futuro da nossa ancestralidade. Nós não somos povos conquistados. Tenho feito o caminho de volta há alguns anos, buscando minha identidade roubada e interrompida pela colonialidade, e esse momento de recolhimento me trouxe à pele memórias que carrego no corpo. Meu corpo é um mapa de histórias silenciadas e, aqui, trago um pedacinho desse nós que carrego.
De vários lugares chegam notícias de quem se espanta com a presença da natureza nas cidades. Pessoas afirmando que nós, humanos, somos o mal do mundo. Enquanto pensarmos que nós somos o vírus, jamais seremos a cura da terra. Precisamos assumir a responsabilidade de suspender o céu e adiar o fim do mundo. Vivemos em uma terra emprestada das gerações futuras. O momento pede que pensemos que mundo devolveremos para elas. Tenho no peito a esperança de que nada será como antes e trago nos pés a vontade de caminhar em um novo mundo possível. Espero que você esteja bem e que atravessar este momento te germine uma consciência renovada. Que, mais do que para pensar e escrever a quarentena, você a aproveite para pensar e escrever um futuro não ocidentalizado.
Com isso em mente, selecionei poemas que falam da força e resistência Indígenas, palavras nascidas de mulheres guerreiras. Palavras que carregam ancestralidade. Palavras de urucum e jenipapo.
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Coração na aldeia, pés no mundo
[...]
Agradeço a Tupã
Por me guardar e inspirar.
Ao meu povo Tabajara,
Pela vida me ensinar.
Se você é como eu,
Sofre ou antes sofreu,
Não desista de lutar
Esta é minha história,
Tenho muito pra contar.
Feliz eu serei um dia
Se o preconceito acabar.
Letras são meu baluarte,
Revelo com minha arte
Um Brasil a conquistar.
Auritha Tabajara
E-mail: <aurileneescriora@hotmail.com>.
Instagram: @ita.tabajara.
Facebook: Ita Tabajara.
*
Eu não sou sua princesa
Lixa entre duas culturas que rasgam
uma a outra Eu não sou
um meio pelo qual você pode alcançar compreensão espiritual ou sequer
aprender a trabalhar com miçangas
Eu só estou disposta a te dizer como fazer pão frito
1 xícara de farinha, colher de sal, colher de fermento em pó
Mexa Adicione leite, água ou cerveja até que fique firme
Molde cada parte em bolas Deixe descansar
Frite em gordura quente até dourar
Isso é comida de Índio
somente se você souber que Índio é uma palavra do governo
que não tem nada a ver com nossos nomes para nós mesmas
Eu não vou cantar para você
Eu não admito nenhuma espiritualidade para você
Eu não vou suar com você ou aliviar sua culpa com belos contos de tartaruga
Não vou usar roupas de dança para ler poesia ou
explicar praticamente nada
Eu não acho que suas tentativas de nos entender vão funcionar então
Prefiro que você nos deixe em qualquer paz que ainda possamos
arranjar depois de tudo o que você continua fazendo
Se você me enviar mais um maldito folheto sobre como curar a mim mesma
por $ 300 com aconselhamento feminista especial
Eu provavelmente vou atear fogo em algo
Se você me disser mais uma vez que sou sábia, vomitarei em você
Olhe para mim
Veja minha confusão solidão medo preocupação com todas as nossas
lutas para manter o pouco que resta para nós
Olhe meu coração não suas fantasias Por favor, nunca mais
me fale novamente sobre sua tataravó Cherokee
Não presuma que conheço pessoalmente todas as outras Ativistas Nativas
no mundo Que eu sei nomes de todas as tribos
ou posso pronunciar nomes que nunca ouvi
ou que sou especialista no ponto peiote
Se você alguma vez
me disser novamente
quão forte eu sou
Vou me deitar no chão & gemer para que você veja
finalmente minha fraqueza humana como a sua
Eu não sou forte Eu estou em pedaços
Sou abençoada com a vida enquanto muitas que conheci estão mortas
Eu tenho trabalho a fazer louça para lavar uma casa para limpar
Não há mágica
Veja minhas simples mãos rachadas que lavam as mesmas coisas que
você lava Veja meus olhos escuros de medo em uma casa sozinha
tarde da noite Veja que sentir pena de mim ou me adorar
são as mesmas coisas
1 xícara de farinha, colher de sal, colher de fermento em pó, líquido para dar liga
Lembre-se, esta é apenas a minha receita Existem muitas outras
Me deixa descansar
aqui
finalmente
Chrystos
Título original: “I am not your princess”. Tradução de Fernanda Vieira.
*
Identidade indígena
Em memória de meus avós, escrito em 1975
(versão indígena)
Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!
Mas caio da vida e da morte
E range o armamento contra nós.
Mas enquanto eu tiver o coração acesso
Não morre a indígena em mim e
E nem tampouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha gente passo a passo
E firme, em direção ao sol.
Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
Carrego o peso da família espoliada
Desacreditada, humilhada
Sem forma, sem brilho, sem fama.
Mas não sou eu só
Não somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da História.
Seremos milhões, unidos como cardume
E não precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lágrimas
Por quem não nos tem respeito.
A migração nos bate à porta
As contradições nos envolvem
As carências nos encaram
Como se batessem na nossa cara a toda hora.
Mas a consciência se levanta a cada murro
E nos tornamos secos como o agreste
Mas não perdemos o amor.
Porque temos o coração pulsando
Jorrando sangue pelos quatro cantos do universo.
Eu viverei 200, 500 ou 700 anos
E contarei minhas dores pra ti
Oh! Identidade
E entre um fato e outro
Morderei tua cabeça
Como quem procura a fonte da tua força
Da tua juventude
O poder da tua gente
O poder do tempo que já passou
Mas que vamos recuperar.
E tomaremos de assalto moral
As casas, os templos, os palácios
E os transformaremos em aldeias do amor
Em olhares de ternura
Como são os teus, brilhantes, acalentante identidade
E transformaremos os sexos indígenas
Em órgãos produtores de lindos bebês guerreiros do
futuro
E não passaremos mais fome
Fome de alma, fome de terra, fome de mata
Fome de História
E não nos suicidaremos
A cada século, a cada era, a cada minuto
E nós, indígenas de todo o planeta,
Só sentiremos a fome natural
E o sumo de nossa ancestralidade
Nos alimentará para sempre
E não existirão mais úlceras, anemias, tuberculose.
Desnutrição
Que irão nos arrebatar
Porque seremos mais fortes que todas a células
cancerígenas juntas
De toda a existência humana.
E os nossos corações?
Nós não precisaremos catá-los aos pedaços mais do chão!
E pisaremos a cada cerimônia nossa
Mais firmes
E os nossos neurônios serão tão poderosos
Quanto nossas lendas indígenas
Que nunca mais tremeremos diante das armas
E das palavras e olhares dos que "chegaram e não foram".
Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal!
E te direi identidade: Eu te amo!
E nos recusaremos a morrer,
A sofrer a cada gesto, a cada dor física, moral e espiritual.
Nós somos o primeiro mundo!
Aí queremos viver pra lutar
E encontro força em ti, amada identidade!
Encontro sangue novo pra suportar esse fardo
Nojento, arrogante, cruel...
E enquanto somos dóceis, meigos
Somos petulantes e prepotentes
Diante do poder mundial
Diante do aparato bélico
Diante das bombas nucleares.
Nós, povos indígenas,
Queremos brilhar no cenário da História
Resgatar nossa memória
E ver os frutos de nosso país, sendo divididos
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e "desplazados"
Como nós.
Eliane Potiguara
Site: <http://www.elianepotiguara.org.br/>.
*
Autobiogeografia
Eu não falo só
Minha voz é composta pelas vozes
Das minhas ancestrais
Dos meus ancestrais
Que se encontram guardados no tempo
E em mim
Esse é o meu tempo
Ixé aiku iké
E todas e todos seguem comigo
Cada palavra que deixa minha boca,
Cada linha que encosta no papel
E conta minha história
É topografia da minha alma
que me reposiciona no mundo
Se rapé puku
Eu não escrevo só
Eu não existo só
A palavra e a caneta pesam
Com a trajetória de quem veio antes de mim
Para que eu chegasse até aqui e pudesse carregar comigo
Todos os passos que foram dados até ontem
Eu sou o hoje da minha ancestralidade
O tempo é tecido de mistério
Iandé iaiku
Nos embaralhamos nas suas tramas e
Compomos o cosmos e o topos
Em uma cosmografia
Autobiográfica
E coletiva
Uma autobiogeografia
Fernanda Vieira
Site: <http://ikamiaba.com.br/>.
Instagram: @vieirafell.
*
Iasypitã Potiguara Instagram: @iasypotiguara. Facebook: Iasypitã - Nas Pegadas dos Potiguara.
*
União dos povos
Nós, povos indígenas
Habitantes do solo sagrado
Mesmo sem nossa aldeia
Somos herdeiros de um passado.
Buscamos manter a cultura
Vivendo com dignidade
Exigimos nosso respeito
Também vivendo na cidade.
Somos parte de uma história
Temos uma missão a cumprir
De garantir aos tanu muariry
Sua memória, seu porvir.
Vivendo na rytama do branco
Minha uka se modificou
Mas a nossa luta por respeito
Essa, ainda não terminou.
Pela defesa do que é nosso
Todos os povos devem se unir
Relembrando a bravura
Dos Kambeba, dos Macuxi
Dos Tembé e dos Kocama
Dos valentes Tupi-Guarani.
Assim, os povos da Amazônia
Em uma grande celebração
Dançam o orgulho de serem
Representantes de uma nação
Com seu canto vêm dizer:
Formamos uma aldeia de irmãos.
Marcia Wayna Kambeba
E-mail: <marciacambeba@gmail.com>.
Instagram e Youtube: Marcia Kambeba.
Facebook: Marcia Wayna Kambeba.
Obras mencionadas:
CHRYSTOS. Not Vanishing. Vancouver: Press Gang, 1988.
KAMBEBA, Marcia Wayna. Ay Kakyri Tama: eu moro na cidade. São Paulo: Pólen, 2018.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.
TABAJARA, Auritha. Coração na aldeia, pés no mundo. Ilustrações de Regina Drozina. São Paulo: Uk'a Editorial, 2018.
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Fernanda Vieira é corpo (sub)urbano indigenodescendente, de origem Xokó e com suas raízes paternas em Aracaju (SE). Escritora, poeta, tradutora, doutoranda, pesquisadora em Estudos de Literatura pela UERJ com bolsa FAPERJ e membro do GRUMIN (Grupo Mulher - Educação Indígena). Publicou Crônicas ordinárias, sua primeira obra de ficção, em 2017, pela Macabéa Edições. No momento, é Visiting Scholar na Boston University com bolsa FAPERJ.
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