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Poemas da quarentena #1

Atualizado: 26 de abr. de 2020


A ação é inspirada na iniciativa de mesmo nome de Simone Brantes e Heleine Fernandes, que estão reunindo, no perfil da primeira no Facebook, poemas sobre e para ler na quarentena. No blog da Macabéa, o recorte é de autoria de mulheres.

Agora deixa o livro

volta os olhos

para a janela

a cidade

a rua

o chão

o corpo mais próximo

tuas próprias mãos:

aí também

se lê

Ana Martins Marques


A Macabéa traz, hoje, seis poemas feitos por mulheres em tempos de quarentena. Longe, por vezes, de nossos amigos, familiares e amores, mas irmanadas no desejo de cura coletiva, cuidamos, por estes dias, em aquietar as palavras e formas na página como atitude de resistência e espera.

Estragon e Vladimir, personagens de Beckett, em Esperando Godot, de 1953, enquanto aguardam o personagem título, que nunca vem, fazem jogos e narram histórias para passar o tempo. Escrever é, também, nossa maneira de estar no tempo (e os tempos são difíceis). Não esperamos Godot ou um deus inexistente; escrevemos.

Estou, neste post, em companhia de gente adorável: Lia Miranda, Sil Guimarães, Simone Brantes, Sophia Pinheiro e Susana Fuentes. Não sei se todas as autoras aderem a um programa resolutamente feminista. (Nem mesmo eu sei se faço isso; quando escrevo, apenas escrevo.) Mas leio aqui uma escrita de outra ordem, que foge à sintaxe patriarcal e sistêmica, e que talvez saúde a nova configuração que nos aguarda após a tempestade. Sim, “o sol há de brilhar mais uma vez”.


Desculpem-me se o texto de apresentação soa filosófico, com ares de prognóstico, ou esperançoso demais. Pode ser que daqui a pouco silenciemos um pouco, colocando-nos temporariamente em estado de escuta, no desenrolar dos acontecimentos que envolvem todos os habitantes da Casa Comum, o planeta Terra. Do silêncio, também se serve a poesia.

Por ora, estão aí seis autoras mulheres, que escolheram “continuar”, ainda que esse movimento esteja, agora, regido pelo signo da espera.


_

elo


Nós, tal matrioskas

dentro de casa

cuidando da casa

a Terra, a mãe o pai e os avós

dentro de nós


Cassiana Lima Cardoso

*

Te amo, irmão contagioso, irmão mascarado

irmão a dois metros de mim.

Te amo com teus rombos de bala

teus membros a menos, teus ocos,

teus ossos pneumáticos, teu pouco

teu peito

aberto

através do qual vejo teu tempo

escatológico, as coisas perdidas

que insistem, que fisgam, que lembram

que um dia foste completo

que um dia serás todo.

Te amo, teus cacos cobertos

de limo, de lama, de pó

o que de ti é pó, e o que de ti é

sopro

com todos os meus abismos, meu sopro

com meus pedaços de corpo

te amo.


Lia Miranda


*


tea for two

açúcar ou adoçante ela me pergunta

depois de encher minha xícara de chá

: em volta da mesa trocamos delicadas

porções de afeto toques & certo pudor


há tempos silenciou o barulho das ruas

a vizinha do lado guardou as panelas

e os velhos de baixo pararam de tossir

: a brisa provoca um acalanto nas folhas


no meio de nós um vaso de hibiscos azuis

traz o mar de outubro para dentro de casa

: o modo como ela joga os cabelos para trás

relembra-me os gestos que refaço toda manhã


mais chá ela insiste e quer saber também

como foi o meu dia paisagens do livro que li

: a solidão é esse bolo que repartimos em

pedaços para alimentar a fome do mundo


entre linhas nacos e goles ocultos em cada ato

ela cerra os olhos e me beija ofegante na boca

malgrado um vírus que se amolda na penumbra

: une saison no inferno em tempo real pela tevê


pode ser que somente a morte nos separe e eu

continue vivendo sem morrer pela metade

: só tomo chá assim, às cinco da tarde

sozinha distante descalça em frente ao espelho


Sil Guimarães


*


Foi a saudade que

me fez nos colocar diante

do mar

Uma faixa aquosa longa

e larga

limitada

pela areia e pelo horizonte que

parece sempre dizer

aqui os olhos cedem e eu

sigo. E arqueados

sobre o parapeito da

janela olhar um

azul esfuziante que não há

em nenhum mar fora da saudade

E passar a mão sobre

teus cabelos

fortes e negros

puxar suas bochechas e te

abraçar tantas vezes

Foi a saudade que me fez ainda

agora ter vontade de repetir

as palavras do velho

forçado diante do personagem

mais lindo de Dickens

Patrick, “meu menino querido”


Simone Brantes


*


série animal


Sophia Pinheiro

Instagram: @sophiaxpinheiro.


*


a vida toda uma luta sobreviver com a arte neste país a arte de viver com pouco e ainda assim seguir e fazer parte mas como viver sem arte a gente aperta o cinto e agora sem selar as mãos o beijo o abraço sobra tempo e podemos fazer arte mas onde de que modo lançar o livro apresentar a peça ganhar o dia viver de aula viver de arte quando se adia não a cria ou sonho ou luta mas a realidade


Susana Fuentes


_

Cassiana Lima Cardoso é doutora em Literatura Comparada (UFRJ). Professora do Instituto de Aplicação Fernando R. da Silveira, o CAp-UERJ. É autora do livro Desastrada & outros contos breves, Coleção I do Mulherio das Letras, editora Venas Abiertas.

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