
Agora deixa o livro
volta os olhos
para a janela
a cidade
a rua
o chão
o corpo mais próximo
tuas próprias mãos:
aí também
se lê
Ana Martins Marques
A Macabéa traz, hoje, seis poemas feitos por mulheres em tempos de quarentena. Longe, por vezes, de nossos amigos, familiares e amores, mas irmanadas no desejo de cura coletiva, cuidamos, por estes dias, em aquietar as palavras e formas na página como atitude de resistência e espera.
Estragon e Vladimir, personagens de Beckett, em Esperando Godot, de 1953, enquanto aguardam o personagem título, que nunca vem, fazem jogos e narram histórias para passar o tempo. Escrever é, também, nossa maneira de estar no tempo (e os tempos são difíceis). Não esperamos Godot ou um deus inexistente; escrevemos.
Estou, neste post, em companhia de gente adorável: Lia Miranda, Sil Guimarães, Simone Brantes, Sophia Pinheiro e Susana Fuentes. Não sei se todas as autoras aderem a um programa resolutamente feminista. (Nem mesmo eu sei se faço isso; quando escrevo, apenas escrevo.) Mas leio aqui uma escrita de outra ordem, que foge à sintaxe patriarcal e sistêmica, e que talvez saúde a nova configuração que nos aguarda após a tempestade. Sim, “o sol há de brilhar mais uma vez”.
Desculpem-me se o texto de apresentação soa filosófico, com ares de prognóstico, ou esperançoso demais. Pode ser que daqui a pouco silenciemos um pouco, colocando-nos temporariamente em estado de escuta, no desenrolar dos acontecimentos que envolvem todos os habitantes da Casa Comum, o planeta Terra. Do silêncio, também se serve a poesia.
Por ora, estão aí seis autoras mulheres, que escolheram “continuar”, ainda que esse movimento esteja, agora, regido pelo signo da espera.
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elo
Nós, tal matrioskas
dentro de casa
cuidando da casa
a Terra, a mãe o pai e os avós
dentro de nós
Cassiana Lima Cardoso
*
Te amo, irmão contagioso, irmão mascarado
irmão a dois metros de mim.
Te amo com teus rombos de bala
teus membros a menos, teus ocos,
teus ossos pneumáticos, teu pouco
teu peito
aberto
através do qual vejo teu tempo
escatológico, as coisas perdidas
que insistem, que fisgam, que lembram
que um dia foste completo
que um dia serás todo.
Te amo, teus cacos cobertos
de limo, de lama, de pó
o que de ti é pó, e o que de ti é
sopro
com todos os meus abismos, meu sopro
com meus pedaços de corpo
te amo.
Lia Miranda
*
tea for two
açúcar ou adoçante ela me pergunta
depois de encher minha xícara de chá
: em volta da mesa trocamos delicadas
porções de afeto toques & certo pudor
há tempos silenciou o barulho das ruas
a vizinha do lado guardou as panelas
e os velhos de baixo pararam de tossir
: a brisa provoca um acalanto nas folhas
no meio de nós um vaso de hibiscos azuis
traz o mar de outubro para dentro de casa
: o modo como ela joga os cabelos para trás
relembra-me os gestos que refaço toda manhã
mais chá ela insiste e quer saber também
como foi o meu dia paisagens do livro que li
: a solidão é esse bolo que repartimos em
pedaços para alimentar a fome do mundo
entre linhas nacos e goles ocultos em cada ato
ela cerra os olhos e me beija ofegante na boca
malgrado um vírus que se amolda na penumbra
: une saison no inferno em tempo real pela tevê
pode ser que somente a morte nos separe e eu
continue vivendo sem morrer pela metade
: só tomo chá assim, às cinco da tarde
sozinha distante descalça em frente ao espelho
Sil Guimarães
*
Foi a saudade que
me fez nos colocar diante
do mar
Uma faixa aquosa longa
e larga
limitada
pela areia e pelo horizonte que
parece sempre dizer
aqui os olhos cedem e eu
sigo. E arqueados
sobre o parapeito da
janela olhar um
azul esfuziante que não há
em nenhum mar fora da saudade
E passar a mão sobre
teus cabelos
fortes e negros
puxar suas bochechas e te
abraçar tantas vezes
Foi a saudade que me fez ainda
agora ter vontade de repetir
as palavras do velho
forçado diante do personagem
mais lindo de Dickens
Patrick, “meu menino querido”
Simone Brantes
*
série animal
Sophia Pinheiro
Site: <http://www.sophiaxpinheiro.com/>.
Instagram: @sophiaxpinheiro.
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a vida toda uma luta sobreviver com a arte neste país a arte de viver com pouco e ainda assim seguir e fazer parte mas como viver sem arte a gente aperta o cinto e agora sem selar as mãos o beijo o abraço sobra tempo e podemos fazer arte mas onde de que modo lançar o livro apresentar a peça ganhar o dia viver de aula viver de arte quando se adia não a cria ou sonho ou luta mas a realidade
Susana Fuentes
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Cassiana Lima Cardoso é doutora em Literatura Comparada (UFRJ). Professora do Instituto de Aplicação Fernando R. da Silveira, o CAp-UERJ. É autora do livro Desastrada & outros contos breves, Coleção I do Mulherio das Letras, editora Venas Abiertas.
Nunca li nada tão dentro de mim. A poesia tem esse poder: revirar o outro pelo avesso.