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Olhar para o outro – poesia

Atualizado: 20 de mai. de 2020


Street wall with posters © Libreshot

Antes da quarentena já dizíamos. Ninguém mais se vê. E agora, como pensar esse reencontro? Voltar para o que já era ausência?


Há tempos, esse modo de vida alheio a encontros. Diferente do estar só, esse eu com quem vivo em sua marca plural que não é desconectada do mundo. Estar só também como parte do que é humano. Hannah Arendt escreve que antes de estar com o outro – você está com você mesmo. Será que, onde se perde o contato com o outro, você perde esse eu que te acompanha também?


E agora nos acompanha outra coisa mais.


O medo.


Ainda assim, no escuro se escreve. Para que não sejamos invisíveis, e para que a memória venha à luz. Na arte, vários nomes que se perdem. E saudamos nossos mortos para que reste chão e memória para habitar. E há os que se perdem em números fixados nos dados e estatísticas. No silêncio de um dia, fagulhas de intensa chama. E cada nome camuflado em número grita uma ausência.


Escrever também é inaugurar um tempo de escuta, trazer a palavra para onde não haveria nada. Demorar-se diante de algo.


No entanto, mais do que nunca, podemos nos perguntar: como é falar de onde você não está? Falar por pedaços, telas, fragmentos. E a escrita não como resposta, mas para manter viva a pergunta e a vontade de se rebelar contra o apagamento do corpo, da voz, da pele, em sua celebração do abraço, do toque, da conversa que nasce em presença, no olho, no gesto. A arte do encontro, como é no teatro, de onde saímos transformados e, desse encontro, restam as lembranças. A apresentação, a cada noite única, nos faz lembrar. Ora, na escrita esbarramos em algo que não se deixa apreender. E isso nos constitui em sujeitos com fendas, aberturas, capazes de realizar o diálogo com esse eu no estar só, esse estar só necessário para todas as formas de pensar, e aqui volto a Hannah Arendt.


A arte relegada a último plano pode ser um modo de anestesia e interrupção, de abolir a consciência, negar o direito à literatura, o direito à arte, uma forma de impedir aberturas, fendas, onde o sujeito possa nascer.


Pensar a situação do trabalhador das artes e da cultura no Brasil, o artista privado do trabalho que ocupava os teatros, as praças, as ruas. O escritor, o ator, o professor sem emprego, o pesquisador sem bolsa de fomento à pesquisa. Ninguém sabe o que virá e de que forma poderemos viver. E, ainda assim, se escreve com a palavra e o corpo, se não te falta abrigo por enquanto. Ainda assim, escrevemos e tentamos manter viva a arte e a luta para que possamos ser cidadãos um dia, ter uma vida em que você possa se sentir fazendo parte. Na esperança, se inscreve a palavra dor; mas, enquanto podemos, seguimos. Mesmo partidos em quadrados, tela de computador ainda de tubo sem câmera, quando apareço só voz no recorte escuro ou nos dez minutos em que o celular aguenta.


O celular capta a imagem que não é jogada para a tela porque a imagem jogada para a tela é a que tem a voz. E a voz fala do quadrado escuro.


Para que não estejamos no escuro, escrevo. Na escrita, o caminho, a memória dos espaços, nomes, afetos. Na vontade do encontro, a criação, o estar só na descoberta do tempo. E me pergunto sobre as várias formas de uma cidade digital ficar partida, num lugar tão desigual como o Rio, o risco de uma voz não atravessar em rede a cidade. E deixar suas marcas, interações, num espaço que é seu.


E agradeço à Macabéa Edições por este lugar de troca tão importante – e a oportunidade de convidar autoras do grupo de estudos de criação literária que oriento.


_

Sem relógio

Relógio de pulso

não dá certo

em tempos de quarentena.

Não dá certo

para lavar as mãos

do polegar ao mindinho

das pontas dos dedos aos pulsos

as palmas o dorso.

Como crianças aprendemos

molhando sem medo

a pulseira do relógio.

Em tempos de quarentena

tomamos sol à janela

andamos do quarto à cozinha

da cozinha ao quarto

lavando as mãos lavando as mãos lavando as mãos.

As velhas mãos

agora aprenderam

sem relógio

com medo.


Lucia Fonseca


*


chiaro oscuro


a maçã não está

no escuro

eu ainda a vejo

estranho estar na luz

como a maçã e

ninguém me ver

amigos família estranhos escutam

a minha voz

ninguém vê

meu corpo

a voz está onde o corpo não está

a luz parece incidir sobre a voz

em quarentena o corpo está

no escuro


Patrícia Tesch

*


Ainda não sei

quanto mede metro e meio

de distância

quanto mede a saudade

de braços

entrelaçados em nossas costas

quanto mede o toque

nos seus cabelos

e o tremor

com sua voz em meus ouvidos

quanto mede

mês e tanto longe de casa

e a vista para o prédio

ao lado

quanto mede a discussão

do almoço de domingo

molho vermelho

ou branco

feijão com caldo

ou farinha

no tutu à mineira

quanto mede aquela vida

agora outra

e a distância de sua voz

em minha tela

quanto mede esse amor

sereno e inesperado

que nasce

solidário

na distância

imposta

pela quarentena

S. G. de Paula

*

e agora na tela dois traços azuis no lugar de olhos pulso, conversa ritmo eu posso ver algum dia você? ouvi a pergunta do menino para a avó na tela então ele não achava que a tinha visto ele não achava que aquilo era ver

eu posso ver algum dia você essa pergunta muito simples apesar das trocas no whatsapp não sabia ainda que a leria de forma trágica alguns meses depois nesses tempos de agora

eu posso ver algum dia você 

nesses tempos em que não se sabe quando se volta  a ver gente bem antes me fiz a pergunta onde se vê gente hoje em dia e na minha lista de respostas escrevi no teatro na cena, na oficina na aula quando você estuda olha as pessoas e sabe conhecer pelas mãos pelos pés é como conhecemos o mundo você conhece as suas costas? pergunta a esther na oficina de movimento e composição que cor tem as suas mãos qual o seu abraço mais demorado espero que possamos nos lembrar o quanto de você há no abraço o quanto de você é entrega não nos esqueçamos disso quando de novo na rua sobrevivermos à casa voltemos ao telefone à voz e ao encontro fora da tela tenho sonhado com espaços grandes, desertos onde de repente encontro gente salas de teatro em prédios antigos subo as escadas e me perco por salas vazias as portas não aparecem mais no entanto uma delas está ali e basta acertar o andar a direção o ímpeto e eu penso em você de quem alguém já ficou  a um metro de distância por ser o outro o outro de quem alguém tem medo e no entanto o medo pode ser de algo muito próximo eu sou um outro a quantos metros de distância posso ficar para apagar limpar qualquer vestígio do outro em mim depois que tudo isso passar você escolhe  se vai manter a conversa ou a distância

Susana Fuentes

_

Susana Fuentes escreveu Luzia, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e Escola de gigantes, contos, selecionado no programa “Rio, uma cidade de leitores” na Biblioteca do Professor da SME (RJ). Escreveu a peça teatral Prelúdios, em quatro caixas de lembranças e uma canção de amor desfeito. Participou de diversas antologias de contos. É doutora em Literatura Comparada pela UERJ.

                         

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