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Foto do escritorCassiana Lima Cardoso

Matrioska de chita: três poemas de Cassiana Lima Cardoso


© La Cruz


O fato de que sou escritora: uma

mulher escritora, não uma dona-de-

casa que escreve, mas alguém

cuja existência, em sua totalidade,

é comandada pelo ato de escrever.

Simone de Beauvoir



rascunhando personas


há tirésias por toda parte

portanto, se você tem medo da verdade

não fique muito tempo na presença de

crianças, mendigos e loucos

dê sua esmola, gorjeta ou deixe o seu

gracejo

e vaze num lampejo

pois esses tipos não têm tempo

nem paciência

para seres espantados e atônitos


há cassandras por toda esquina

nas feiras, nas filas de auxílio emergencial,

nas salas de espera

mas é mais fácil chamar de louca, histérica

e seguir uma vidinha cheia de crenças

limitantes

que te fazem sentir, no entanto,

"como reizinhos importantes"

com seus livros e suas estantes

(os intelectuais, meus deuses,

são aqui os mais irritantes)


há antígonas com toda a sina

essas estão em centenas, milhares

quando caladas, ainda falam

e creontes os mais infelizes

(há um mesmo em meu país)

mais terrível que o irmão de jocasta

sem um belo e sábio filho, como hémon,

claro

que nos faria o favor de aconselhá-lo


finalmente, há édipos

eu mesma me sinto uma édipo fêmea

insistindo em ler o oráculo do mundo

sem dar conta, talvez,

da natureza de minha centelha

dentro do cosmo e de minha rua.

ou talvez não tenha encontrado ainda

minha personagem.

(melhor parar por aqui, já que o verso

acima

trouxe-me um certo alívio, difícil de

explicar, porém.)



voo de táxi


um taxista me disse

que dirigir é fácil

e me deu sábios conselhos

sobre a arte de conduzir um automóvel.

um me ensinou a fazer arroz doce

outro chama-se john lennon


outro gosta de marx

outro é da bahia

de santa catarina

do piauí

de astolfo dutra, em minas gerais

creio que esse me ensinou a fazer a

iguaria


um me disse ter saudades da ditadura

que ali ninguém fazia de bobo não

outro (alegria)

me disse ainda ontem

que vai votar no filho de caetés

um me mostrou foto de gente morta

outro piscou para a travesti na glória

achei simpático, pisquei também.


um estuda esperanto e sabe poemas

de augusto dos anjos de cor

um escutava boleros

outro, sucessos de rita pavone

outros, só hino de igreja

outro me pediu para escolher

a estação de rádio

e o acaso nos fez cantar juntos

um samba de Dona Ivone Lara.


um taxista me disse que não tem pressa

para nada nessa vida

outro que está difícil pagar as contas

um que descobriram uma bactéria nova

outro, que levou a mulher para saquarema,

levou ao shopping, comprou vestido,

perfume, leva a jantares

mas ela gosta mais do cachorro da família

que dele.



copacabana


quando morei no bairro peixoto,

meu apartamento parecia uma caixinha

de fósforos.

mas havia a copa das amendoeiras

e as janelas alheias.


numa delas, estava um senhor.

um velhinho, sentado em uma poltrona,

ao lado de um abajur.

era, àquela distância, um sósia de

drummond.


ele lia ao cair da tarde e, quando a noite

vinha, acendia o abajur.

suavemente, uma luz ocre inundava tudo.

sua senhora, às vezes, sentava-se ao seu

lado. davam as mãos.


mas ela, como eu, não usava aquele

horário para leitura.

gostava de assistir ao crepúsculo

e de assuntar vidas alheias,

embora nunca tenha me respondido

com um adeus.


isso me fazia pensar que eu imaginava

aquelas coisas, mas não tinha medo.

ainda continuo olhando para eles, na

tarde terna e morna.


talvez a velhinha também olhasse,

naquela época, para uma tarde assim,

perdida no tempo, guardada com amor

no seu coração ou em sua imaginação.


_

Cassiana Lima Cardoso nasceu em São Bernardo, SP, mas cresceu em Cataguases, MG, considerando-se mineira de formação. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas, é doutora em Literatura Comparada e mestre em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora adjunta no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ). Em 2006, escreveu a peça Alice em rimas, no país das maravilhas, encenada pelo Grupo Pirlimpsiquice, em Juiz de Fora, MG. Participou de duas antologias, Haicais e poemas curtos (2018) e Entradas para cotidianos (2019), coletânea de microcontos. Ainda no ano de 2019, publicou seu primeiro livro solo, Desastrada e outros contos breves, integrando a Coleção I do Mulherio das Letras.

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