O fato de que sou escritora: uma
mulher escritora, não uma dona-de-
casa que escreve, mas alguém
cuja existência, em sua totalidade,
é comandada pelo ato de escrever.
Simone de Beauvoir
rascunhando personas
há tirésias por toda parte
portanto, se você tem medo da verdade
não fique muito tempo na presença de
crianças, mendigos e loucos
dê sua esmola, gorjeta ou deixe o seu
gracejo
e vaze num lampejo
pois esses tipos não têm tempo
nem paciência
para seres espantados e atônitos
há cassandras por toda esquina
nas feiras, nas filas de auxílio emergencial,
nas salas de espera
mas é mais fácil chamar de louca, histérica
e seguir uma vidinha cheia de crenças
limitantes
que te fazem sentir, no entanto,
"como reizinhos importantes"
com seus livros e suas estantes
(os intelectuais, meus deuses,
são aqui os mais irritantes)
há antígonas com toda a sina
essas estão em centenas, milhares
quando caladas, ainda falam
e creontes – os mais infelizes –
(há um mesmo em meu país)
mais terrível que o irmão de jocasta
sem um belo e sábio filho, como hémon,
claro
que nos faria o favor de aconselhá-lo
finalmente, há édipos
eu mesma me sinto uma édipo fêmea
insistindo em ler o oráculo do mundo
sem dar conta, talvez,
da natureza de minha centelha
dentro do cosmo e de minha rua.
ou talvez não tenha encontrado ainda
minha personagem.
(melhor parar por aqui, já que o verso
acima
trouxe-me um certo alívio, difícil de
explicar, porém.)
voo de táxi
um taxista me disse
que dirigir é fácil
e me deu sábios conselhos
sobre a arte de conduzir um automóvel.
um me ensinou a fazer arroz doce
outro chama-se john lennon
outro gosta de marx
outro é da bahia
de santa catarina
do piauí
de astolfo dutra, em minas gerais
– creio que esse me ensinou a fazer a
iguaria –
um me disse ter saudades da ditadura
que ali ninguém fazia de bobo não
outro (alegria)
me disse – ainda ontem –
que vai votar no filho de caetés
um me mostrou foto de gente morta
outro piscou para a travesti na glória
achei simpático, pisquei também.
um estuda esperanto e sabe poemas
de augusto dos anjos de cor
um escutava boleros
outro, sucessos de rita pavone
outros, só hino de igreja
outro me pediu para escolher
a estação de rádio
e o acaso nos fez cantar juntos
um samba de Dona Ivone Lara.
um taxista me disse que não tem pressa
para nada nessa vida
outro que está difícil pagar as contas
um que descobriram uma bactéria nova
outro, que levou a mulher para saquarema,
levou ao shopping, comprou vestido,
perfume, leva a jantares
mas ela gosta mais do cachorro da família
que dele.
copacabana
quando morei no bairro peixoto,
meu apartamento parecia uma caixinha
de fósforos.
mas havia a copa das amendoeiras
e as janelas alheias.
numa delas, estava um senhor.
um velhinho, sentado em uma poltrona,
ao lado de um abajur.
era, àquela distância, um sósia de
drummond.
ele lia ao cair da tarde e, quando a noite
vinha, acendia o abajur.
suavemente, uma luz ocre inundava tudo.
sua senhora, às vezes, sentava-se ao seu
lado. davam as mãos.
mas ela, como eu, não usava aquele
horário para leitura.
gostava de assistir ao crepúsculo
e de assuntar vidas alheias,
embora nunca tenha me respondido
com um adeus.
isso me fazia pensar que eu imaginava
aquelas coisas, mas não tinha medo.
ainda continuo olhando para eles, na
tarde terna e morna.
talvez a velhinha também olhasse,
naquela época, para uma tarde assim,
perdida no tempo, guardada com amor
no seu coração ou em sua imaginação.
_
Cassiana Lima Cardoso nasceu em São Bernardo, SP, mas cresceu em Cataguases, MG, considerando-se mineira de formação. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas, é doutora em Literatura Comparada e mestre em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora adjunta no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ). Em 2006, escreveu a peça Alice em rimas, no país das maravilhas, encenada pelo Grupo Pirlimpsiquice, em Juiz de Fora, MG. Participou de duas antologias, Haicais e poemas curtos (2018) e Entradas para cotidianos (2019), coletânea de microcontos. Ainda no ano de 2019, publicou seu primeiro livro solo, Desastrada e outros contos breves, integrando a Coleção I do Mulherio das Letras.
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