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Eu digo te amo para a mulher do espelho – poesia

(ou como aprendi a amar as mulheres que não conheço)



eu aprendi muito tarde a amar mulheres

eu demorei muito a me perceber como mulher

eu olhava para outras mulheres e pensava:

ela é mais magra-bonita-inteligente

era uma vida de comparações. logo eu, que detesto ser comparada.

nós mulheres, desde muito cedo, somos algemadas e amordaçadas:

corpetes-sutiãs-calcinhas-de-renda.

eu tardei a gostar do meu cabelo cacheado chamado de

ruim-enjubado-sarará-bombril

tardei a olhar com carinho para o meu corpo cheio de

curvas-gordura-localizada-na-barriga-pouca-bunda-pernas-finas

eu demorei a usar um short.

a gente é ensinada a se conformar com a dor: alisa o cabelo com soda cáustica,

corta a cutícula com alicate afiado

às-vezes-arranca-um-bife-inflama-sai-pus-amarelo

arranca os pelos com cera quente, aperta o corpo em uma cinta, usa salto tão alto que entorta os tornozelos.

em alguns lugares, ainda perdemos

calcanhares-línguas-úteros-clitóris-dedos.

eles gostam de nos sangrar.

como quando minha avó matava as galinhas do terreiro

despena-corta-a-faca-afiada-deslizando-no-gogó

depois o sangue virava molho pardo para ser devorado no almoço de domingo.

eu tinha nojo dos meus líquidos-muco-saliva-suor

quando é sangue que sai da gente, dissimulamos os espasmos do

ventre-pele-pés-couro-cabeludo

a gente compra propaganda de absorvente e buscopan

tudo branco-alvo-imaculado-alabastrino e a mulher feliz como se nada.

eu tardei a entender o sofrimento das mulheres que não se pareciam comigo

da bisavó indígena sequestrada e estuprada pelo branco meu bisavô

da avó branca que nasceu com calos nas mãos do trabalho da roça

da tia negra violentada por um homem que tinha três vezes a sua idade: e ela só tinha 13

da mãe parda que casou para fugir dos abusos do pai e se enredou nos abusos do marido.

eu lia obras consagradas de autores. (parece que homem já nasce para ser best-seller)

eu ia a médicos por duvidar da competência das mulheres.

olhos-de-cigana-oblíqua-não-é-elogio.

eu aprendi tarde.

eu achava que mulher era tudo dissimulada-falsa-louca-mentirosa.

"e eu não sou uma mulher?"

me perguntei, certo dia ao olhar para outra de mim no espelho-rua-sala-de-aula-salão-de-beleza-shopping.

você não faz ideia do quanto é doloroso perceber-se mulher.

é como olhar direto para o sol em dia de eclipse.

queima a córnea lá no côncavo, mas é de uma beleza indescritível.

você não faz ideia do quanto é pungente enxergar outra mulher.

é como assar milho em uma fogueira e queimar a mão.

descamar os conceitos misóginos que nos foram inculcados até o fundo do osso,

por isso eu digo te amo quando me olho no espelho

por isso a mulher do espelho diz te amo de volta para mim

e juntas, dizemos te amo para as mulheres que não conhecemos.


_

Dia Nobre, nascida em Juazeiro do Norte, cariri cearense, é historiadora, escritora e poeta. Tem dois livros publicados na área da pesquisa histórica, O teatro de Deus (2011) e o premiado Incêndios da alma (2016). Atualmente vive em Petrolina (PE), onde trabalha como professora universitária desenvolvendo projetos ligados à literatura, história e feminismo. Todos os meus humores, sua obra de poesia, é lançada em 2020 pela Editora Penalux.

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