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Documento sem nome – poesia





I.


a segunda vez quem fez fui eu

a primeira também,


na segunda vez um frio no quadril

nas mãos

se no frio dói mais

como dói um corte um golpe uma queda

dessa vez não doeu


na primeira vez também,


na segunda vez eu dormi pra não sonhar

nem queria pensar no que poderia ser se

não estivesse lá,

da primeira vez eu nem dormi,

talvez eu nem estivesse lá e fiz.


quarenta bpm é estar bem relaxada


já estive relaxada outras vezes

de tanto dizerem

relaxa relaxa

aprendi mas dessa vez não fui na marra

dessa vez eu quis.


relaxada como na ponta da faca o equilíbrio de um corte

mas não houve faca

mas não houve corte.


na primeira vez foi tudo em dez minutos

aspirar a casa leva mais tempo

aspirar o pó no interior das coisas

pra não ver mais o pó e esquecer

o que sobrou dos dias.


mas eu não esqueço

o que sobrou da última vez em que você esteve aqui,

por isso eu faço

pela segunda vez

até você sair da minha casa

não é o nosso corpo a nossa casa?

diria tenda, oca,

de onde expulso a família.


debruço-me aqui sobre os joelhos

a tentar espiar o vácuo.


na segunda vez também foi tudo em dez minutos.

falei ao telefone peguei metrô

sem nenhuma sujeira

sem nenhum alarde.

por dentro só o

silêncio frio e seco

de um quarto vazio como deve ser

um quarto limpo limpo.


II.


mas tive que me deparar outra vez

com o quarto vazio

e não quis olhar de frente o espaço baldio

que criei na parte mais sagrada da casa.

ter meu corpo no umbral sem deslocar

o olhar pra parte que eu mesma sujei e limpei

para o que eu tive que jogar fora e joguei.


já pela fresta eu inclino-me tanto

que chega a doer

e eu choro

porque não sei o que fazer com o vazio

do quarto de guardar o quê?

o que pôr no lugar depois que tirei

do lugar?

e odeio as frestas,

não é sempre por elas que se pede por ajuda

e eu não tenho com que ajudar

nem a quem.


empenho-me em virar a costas:

o que não vejo desiste de mim

mas eu não desisto

de fechar a porta e perder a chave

muitas e muitas vezes.


_ Aline Leão, mestranda em estudos literários pela Unifesp, é professora de Língua Portuguesa/Literatura e arte-educadora. "Arte, literatura e educação me interessam, tudo junto. À deriva entre prosa e poesia, divago sobre o caminho e escrevo - às vezes tiro foto."


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