bios(escrita)
Prometi que minha poesia não seria autobiográfica/intimista
fiquei impactada com a frase de Clarice em Água viva
"quero ser bio"
mas eu salto nos versos
Num confronto com a alteridade
ignoro o meio, a interdependência
ignoro as vidas que me atravessam
e não toco o político
São forças que não controlo
não consigo abdicar do individualismo extremado
das experiências subjetivas
desimportantes
da banalidade da poesia
Isso pode ser bom
não serei acusada de panfletária
não será minha a responsabilidade político-social do poema
Pura má vontade ou covardia?
não te conto
só sei que o ser político em mim finge brincar de esconde-esconde
e, às vezes, gosta
não corro o risco de ter a cabeça cortada
Lembrei de um conceito do Candido
heterobiografia:
[a história do "eu", do "outro" e da sociedade, simultaneamente]
parece simples, mas não é
não saberia contar essa história
a bios parece ter morrido em mim
(talvez em nós)
Seria este um aspecto da sociedade contemporânea?
tornar oculto o que é comum a todos?
desprezar a experiência coletiva?
a vida política e humana em sua essência?
não saberia responder
afinal, o que pode um poeta?
Hoje, as palavras adoecem
forças destrutivas anulam a consciência e o fazer poético
o que resta escrever?
fragmentos da vida cotidiana quase nua?
poesia sem valor estético-político?
O fato é que minha capacidade de compor foi afetada
tenho dificuldades de dialogar com a trama do mundo
para alguns, não é uma escolha
a relação entre vida, poesia,
história e política
é muito forte
Não estou apta para as exigências da arte
ela não tem limites
não passa de um laboratório de experimentação do domínio
total.
forma de vida
o animal em mim
morto
fede
mas não abandona o corpo
que segue
ereto
na medida do orgulho
os pés
cansados
fingem
uma humanidade
desmedida
enquanto
a cabeça
molde perfeito
sorri
para o inferno que a sustenta
moinho
verto poemas esquizofrênicos
enquanto vomito saudade
tenho medo da perda
lambo o chão
já não sou eu
não sei quem sou
[ele disse: "um dia de cada vez"]
um enorme espaço de tempo
separou o abraço
solidão a dois é mais latente
tritura
tudo
inominável
corpo que mergulha em Quissamã
corpos que caem como chuva dum prédio no Maracanã
ou da ponte mais alta da cidade...
covardia do ser? ou coragem de ser?
desejo tabu de quem está por um triz
palavra de oito letras não cabe no noticiário
não sai da boca, não entra em discussão
presença-ausência dribla olhares desinteressados
doença: cresce sem rumo
por toda parte, ao nosso redor
enquanto vidas: ESVAEM-SE
_
Renata Ferreira (@chez_foli), nascida em Duque de Caxias (RJ), é poeta e pesquisadora na área de literatura brasileira. Clarão desassossego, seu primeiro livro de poesia, é um dos lançamentos de 2020 da Patuá e já está disponível em: <https://www.editorapatua.com.br/>.
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