Yara,
Nunca somos capazes de ler tudo, ler é feito alimentar-se e como quem come uma fruta inteira, não se é possível saber o quanto da fruta conseguimos preservar em gosto na boca, assim mesmo é a leitura. Leio um livro, mas dificilmente digo tudo sobre ele, há sempre descobertas e redescobertas. Mordo a fruta diversas vezes. Ler como quem se alimenta, esta tarefa precisa ser, primeiramente, contemplativa, primeiro eu olho, observo, cheiro, sinto na ponta dos dedos, depois, leio para matar a fome, quem sabe das ideias, dos olhos, do corpo mesmo.
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Na ação de me alimentar, do texto... ou não… são nas cores que encontro de imediato o apetite. As cores – enquanto polos motivacionais de imagens – sempre formam em mim uma reação plurissignificativa. Quando digo cores, me refiro aos tons que o poema, estranhamente – felicidade a nossa então – projeta. Eu costumo, em exercício constante, enxergar cores não tangíveis nas coisas, sejam elas materiais ou não, sendo o poema, fora do plano físico, a reação é quase sempre de força centrípeta. Aí, fico com a sensação sinestésica, quando o poema me deita a ver, de sentir cores, tatear quem sabe cheiros, coisas impossíveis de acontecer, se não fosse a imaginação – "o agente que move o ato erótico" – a guiar quase tudo durante e após a leitura, confesso que eu perderia o prumo e não alcançaria os caminhos que você trilha em Descobertando. Teus versos me reavivaram cores – como você já sabe – mas para além delas, destas cores que sinto, pintam os usos e formas do erotismo ao cansaço.
Se é possível pensar que o erotismo possua uma cor, isto só me é possível, graças a esta periculosidade da poesia, que engendra matérias impossíveis para um campo também impossível. Jogos imateriais à parte, o que vale para mim agora é seguir nesta investigação sobre o domínio das cores na atmosfera de efusão e cansaço do teu livro. De um lado, na primeira parte, toda a cor vermelha, de um vivo diurno e solar "acende o candeeiro" e num transbordamento vibrátil de pernas, saliva, gozo e elementos sugestivamente eróticos, a
Efusão – ação ou efeito de efundir, de derramar, verter; derramamento: efusão de sangue.
Este efeito tátil de sentir o ato de comer, físico, tal qual o fogo. Os movimentos misticamente programados, tão habitualmente vistos como aleatórios, mas precisos de quem, intensa, também permite ser alimento:
o AMOR me comeu.
Foi assim, bem rápido, sem digestão.
Sem dor, nem fui mastigada.
Fui inteira, primeiro as pernas,
depois o tronco.
e no emaranhado de ondas cerebrais, pernas e tronco faz-se este desejo, este mesmo, sinônimo para efusão, incendeia a "noite" devoradora, tal qual a seiva da fruta que umedece este órgão altamente muscular, a língua, muito além dela, os dedos, nas articulações que constroem danças, escada e alçapões, místicas formas de penetração e gozo, "...vinho/e amor perdido".
Contudo, "os sentidos, sem perder os seus poderes, convertem-se em servidores da imaginação e nos fazem ouvir o inaudito e ver o imperceptível", transformam então esta potência toda em variações selvagens destas cores que te escrevo, vermelho e marrom.
Há um intervalo demarcatório em Descobertando, onde esta variação aplica toda a sua intensidade primeira, numa espécie de giro pelas ruas, pelo grito e sobretudo, pela relação, busca e efetivação da liberdade entre mulheres. É o vermelho também vivo, centrípeto, de força, mas este que urge e atrelado à revolucionária "outra voz" do poema que "não espera inspiração", diz porque deve ser dito. O instante talvez, em que "a vida insinue sua vigorosa vontade de confirmar-se voz que se mistura a outras vozes", estas "vozes-mulheres". Mas toda luta cansa o corpo, a cabeça "não pensa o que a alma deseja" e padece no:
Cansaço – sem disposição ou energia para se fazer algo; condição de quem está aborrecido, entediado, aborrecimento.
e a palavra, agora ausente da matéria que a dissolve, amplia as percepções de uma variação da cor, agora marrom – terrosa e selvagem, explora as relações com o silêncio de forma mórbida e noturna, a dependência afetiva, isolamento, mas também de conexão com a Mãe Terra. A observação e o cumprimento dos ritos da casa, dos espaços, do microcosmos do quarto, da sala, das formas primárias que oferecem abrigo. Nesta segunda parte do livro, você apresenta este olhar sobre tudo, a percepção da redescoberta e do pertencimento:
Olhou para o chão e percebeu a inevitável certeza: seus pés pisavam pelos, cabelos e poeira acumulados e arrastados por semanas. Não sabia ao certo quantas semanas, por vezes deixava tudo escuro, sendo mais fácil pisar limpo.
Liberdade mesmo é explodir com a palavra, estas, "não nasceram para o silêncio", em meio a pausa, "elas gritam", não há recolhimento forçado ou terapêutico que as dome, elas saem, exodus, reafirmam nas imagens cotidianas, a monstruosidade de estarmos em silêncio e mesmo assim, elas irrompem, senão em versos, em imagens de crescimento e reconexão, tais como os pelos, o sangue, a solidão. Mas é sob as faces do tempo, impiedoso ou não, que a ação de descobertar, assim como a de comer uma fruta, me deixa com esse gosto, a língua, sempre fúria, preserva nas papilas filiformes este gosto de vermelho e marrom selvagens.
Obrigada pelos versos, de novo e de novo,
te deixo abraços, destes fortes,
sigamos,
Danuza
* Aspas de Octavio Paz
Audre Lorde
Rosane Preciosa
Conceição Evaristo
Belchior
além das tuas.
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