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Cartografias do afeto: formas para devorar o tempo – para Mika


© Reprodução Instagram Mika Andrade

Mika, Há quem procure coisas nos poemas, como alguém que tem sede e procura do que beber na matéria orgânica da palavra. Eu leio sempre poemas ao lado de um copo d'água, porque quando a palavra reina, a boca seca, nem sempre a leitura basta. Tem ofício o poema nesse sentido. E ele vive dessa sede. Sede constante gera aquele apito no ouvido, a pupila dilatada, neste caso, ter sede constante é ter obsessão, desprogramar a razão por líquido qualquer, no teu caso, é o poema esta energia, este empenho é a tua forma de ser "um pulsar no rio da linguagem", transformando coisas em algo radicalmente novo, absurdamente diferente, dizendo a si e as outras: bebi, comi o tempo. *** "... escapar à roda inexorável e dominar a terra", eis a ação dos teus dedos, no engenho de no poema atravessar a paisagem, qualquer uma delas, inclusive, o tempo. Tem sido este um dos mistérios, o canto das paixões. Para que o poema, até hoje, se mantenha entre nós, somente frente aos sobressaltos, as dores, alucinações, ele se edifica, toma corpo, engole palavra e mata a nossa sede. E esta foi a primeira imagem que me chamou a atenção ao abrir/ler o teu Poemas obsessivos, a sua ação contínua, em todo o livro, de cruzar caminhos por meio da linguagem, se utilizando ou, sendo levada por suas obsessões, que são remédios ou veneno depende da tua dose, ou da nossa para "devorar o tempo".

As oito partes constituintes do livro, me dizem que o poema é mesmo "a máscara que oculta o vazio", é a matéria moldada do barro maior, a vida.

"Sobre poemas", "Sobre saudade", "Sobre livros", "Sobre corpo", "Sobre (a)mar", "Sobre cotidiano", "Sobre infância" e "Sobre mulheres" têm me revelado o sentido das tuas paixões e perseguições. Há de se ter muita coragem para revelar "todos os teus humores". Por isto, estas tuas formas de devorar o tempo, perpassam a necessidade do poema em nascer de alguma obsessão, sejam elas, ausência, amor, prazer, luta. Você emoldura as horas, minutos, segundos, nos cantos da memória, na infância, no amor-figura ausente, no corpo, no sexo, no nosso gozo. Porque tudo te diz do tempo e das formas simples, encontradas para, frente à tua sede, fazer emergir você, cada uma de nós. Partes do teu universo mítico, cotidiano e por isto mesmo, atemporais, parecem me mostrar que toda inevitabilidade da criação do poema passa pela tua ânsia em atravessar a paisagem e no âmbito da linguagem, ser alguém com fome e sede, que pacientemente, te faz acordar com um poema na cabeça e na existência dele, come o tempo.

Nisto, preciso te dizer, o poema nunca nos mata a sede, nem tampouco nos leva à redenção e vivemos suportando "a alucinação do dia a dia", nestas "coisas banais e reais" que sorrateiramente ou não, nossos olhos enxergam e se tornam matéria deste barro moldado que é poema.


Eu só te digo e te peço que estas obsessões te persigam e te mostrem formas diversas de parar ponteiros e escapar a roda perseguidora do relógio e escrever, escrever, afogando, mutilando, costurando, mudando o tempo, na energia fullgaz de viver este e outros tempos.


Eu te agradeço teus versos e deixo muitos abraços,

a luz e a força que os versos podem trazer, desta tua leitora,


Danuza

* Aspas de Octavio Paz, várias vezes

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, sobre o tempo

Dia Nobre, com a licença livre do título

Belchior, sempre.

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