top of page

Bianca Gonçalves: "meu corpo de mulher é uma ilha" – entrevista

Atualizado: 21 de abr. de 2020


Acervo da autora.

Bianca Gonçalves é pesquisadora, professora, revisora e poeta. Graduada em Letras pela USP e mestranda na mesma instituição, mantém o blog Bianca não é branca, onde posta resenhas, crônicas e ensaios. Em 2019 publicou Como se pesassem mil atlânticos (Urutau). Para 2020 está previsto seu segundo livro de poesia.


Valeska Torres Quando começou o seu interesse pela poesia?

Bianca Gonçalves – Sempre fui uma criança interessada em ler. Na infância, li toda a sorte de livros de poesia rimada. Lembro de ler Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Devo isso à minha mãe, que me levava na biblioteca da cidade para ter contato não só com o livro, mas com toda a dimensão física e espiritual que uma biblioteca traz. Mais tarde, na adolescência, mantive uma relação estranha com a poesia que, naquela época (talvez sob influência de fóruns de bandas de goth metal e post punk), denominávamos "gótica", mas na verdade era a geração ultrarromântica da nossa literatura. Lá pelos meus doze, treze anos eu estava totalmente focada na poesia de Álvares de Azevedo e em todo mito que se fabricou e que os adolescentes da minha época persistiam em criar. Neste momento, comecei a escrever poemas depressivos de adolescente. Só na altura da conclusão do meu Ensino Médio passei a ter contato com a poesia do século XX e XXI (os modernistas, a geração da poesia de mimeógrafo, Ana Cristina Cesar, Ledusha, Alice Ruiz, etc) e também, pela internet, soube da existência de Angélica Freitas, que mantinha um blog que acompanhei até o último post, no qual ela parecia se despedir da internet, chamando-a de "chicletinho cósmico" – eu jamais vou me esquecer disso. Neste momento eu também tive contato com Simone de Beauvoir (encontrei acidentalmente na biblioteca da escola os dois volumes de O segundo sexo nas prateleiras destinadas aos livros de biologia). Eu cruzo meu interesse em poesia com o feminismo, pois minhas inquietações que demarcavam o gênero se espraiavam numa pesquisa que eu, ali, começava a fazer com a linguagem. Minha formação de leitora de poesia se deve às bibliotecas públicas das cidades onde morei e das escolas (também públicas) em que estudei.


VT – Como foi o processo de publicação do seu livro Como se pesassem mil atlânticos? Conta um pouco, por favor, sobre a relação com a editora, com os leitores, com o objeto livro, com outros/as poetas.

BG – Em 2012, ano em que voltei para São Paulo para estudar na USP, criei um Tumblr chamado "estive em SP e não me lembrei de vc". Eu peguei um pouco dessa poética do "Não existe amor em SP", que era o mantra paulistano da época. Ali eu produzia toda semana. Sempre morei em periferia, em São Paulo não foi diferente, e o tempo que eu demorava para chegar na USP também era um tempo em que pensava em versos. Lá pelo meu terceiro ano de graduação me envolvi fortemente com militância, segui escrevendo poesia, mas não fazia questão de divulgar. Mais tarde, comecei a fazer iniciação científica sobre a cena poética de autoras negras de São Paulo, nessa época publiquei em duas antologias: Herdeiras de Aqualtune e Louvadeusas. Confesso que nunca me senti à vontade no espaço da poesia mais militante (ou ativista), porque acreditava que minhas questões eram outras. Frequentava saraus, era e sou uma grande entusiasta do lance, mas nunca li um poema meu lá. Não me sentia parte daquilo enquanto poeta. Eu não pensava em publicar livro nessa época, pois achava minha poesia irrelevante e que, na verdade, eu deveria focar na minha escrita como pesquisadora. Eu já estava praticamente "aposentada" da poesia, mas Jarid Arraes (uma grande amiga, que me ajudou muito a sobreviver em São Paulo, que conheço há alguns anos) sempre dava um jeito de me citar em entrevistas, listas, antologias virtuais, etc. As pessoas demonstravam algum interesse, como eu acabei constatando através de egosearch no Google. Minha poesia era lida, estava toda esparramada na internet, o Tumblr tinha sido desativado, então pensei: por que não publicar um livro? Demorei um tempo para pensar a unidade do livro, mandei para a chamada da Urutau sem nenhuma esperança em publicá-lo. E não é que ele foi escolhido? (risos) Foi uma surpresa para mim. Até hoje eu acho esquisito. Peno para enxergar a mim mesma como escritora.


VT Na página 35, você menciona nos versos o título que dá nome ao livro. No poema o peso é a ausência, mas como título do livro, qual é o peso dos mil atlânticos? Tenho diversas interpretações, uma delas é sua ancestralidade, o peso de ser mulher negra no Brasil e no cenário poético. Tudo que acarreta isso historicamente, a memória do navio negreiro cortando o atlântico.

BG – O título é estratégico. Eu pesquiso literatura e pensei que evocar a coisa do atlântico chamaria uma atenção, remeteria (só pela capa) a uma tradição literária afrodescendente/afrodiaspórica/negra. Mas você abre o livro e vê que a coisa vai além. A minha ideia foi essa, não sei se todo mundo que leu pegou a ideia ou se sentiu enganado/a. Mas em nenhum momento pensei em “peso da mulher negra no Brasil”, ainda mais porque não me sinto capacitada para falar sobre isso em termos tão abrangentes.


VT – "Meu corpo de mulher é uma ilha" você afirma nos versos do poema "entre paul gilroy e o rap que não fizemos" e logo depois completa: "mas teu corpo de homem também é uma ilha". Geograficamente, onde essas ilhas estariam localizadas? Como seriam suas características: clima, vegetação, habitantes. Gostaria de ouvir como você enxerga a mulher ilha e o homem ilha.

BG – Este poema foi escrito em cima (pense na imagem do palimpsesto do Genette) do livro O atlântico negro, do Paul Gilroy, que é uma obra essencial para quem estuda questões raciais. Lá pelos meus 22 anos, quando comecei a viajar pelos estudos culturais, esse livro tomou muito dos meus sábados, domingos e feriados. Eu não tinha repertório para pegar todas as referências afro-americanas que o Gilroy trabalha, então eu estudei esse livro por meses. Na época, cruzei com as leituras que fazia de poesia cabo-verdiana, em especial com Vera Duarte, em que a imagem da ilha é uma constante. Eu queria que o poema tivesse essa relação com a teoria, mas que ao mesmo tempo fosse um poema de amor. Tanto que o final ("quer comigo fincar raízes / ou negociar rotas?") é alusão a uma brincadeira linguística (e potencialmente poética) que o Gilroy faz com roots (raízes) e routes (rotas). Não há muito o que se pensar em termos de geografia, ou de um espaço que encontre referentes no "mundo real".


VT – Tanto no livro, quanto na sua última publicação-poema no Instagram, pude observar o quanto a sua avó se entrelaça em suas narrativas. Me conta um pouco sobre ela e o motivo dela ser uma das suas fontes de inspiração.

BG – Não é exatamente um sujeito específico que chamo de "vó" que é motivo da minha especulação literária. Trabalho com uma ideia de "vó" que se faz imagem: a mãe da minha mãe, a mãe do meu pai, a mulher mais velha da família com quem tenho contato, os costumes que essa mulher leva, a linha ancestral que fazemos parte. Tento fazer essas derivações quando penso a "vó" na poesia.


VT – Se tivesse de escolher uma imagem relevante na sua relação com a escrita, qual seria?

© Bianca Gonçalves

BG – "Gênesis". A colagem é um hobby que desenvolvo há, pelo menos, quatro anos. Foi a forma que encontrei para reciclar fotocópias e revistas antigas e, também, é a maneira que lido artisticamente com o fato de ser uma quase-acumuladora. Nesta colagem, pego recortes de revistas e uno com uma xerox de excerto do "Livro de Gênesis", em grego, que li em alguma aula de literatura grega.


VT – Na sua cidade como é sua relação com a literatura?

BG – Não tenho uma relação forte com a cena de poesia na cidade onde vivo, prefiro ocupar outros espaços, em especial, os de educação popular. Aqui frequento mais sebos, é um dos meus rolês favoritos. Em São Paulo, onde estudo, tenho paixão pela biblioteca da minha faculdade (a Biblioteca Florestan Fernandes, da FFLCH) e gosto demais da Biblioteca Mário de Andrade. Durante a graduação, frequentei muito a biblioteca da Casa de Cultura Japonesa, na USP, pois era um lugar com cadeiras duras e mesas que impediam as pernas de se esticarem – e por algum motivo eu associava aquele espaço com disciplina e concentração para os estudos.


VT – O que significou para você publicar um livro de poesia em 2019? Seja no âmbito pessoal e também diante da conjuntura do mundo.

BG – Meu palpite é que o cenário político desolador, acompanhado de uma cena relativamente favorável à visibilidade do ativismo feminista, LGBTQ, negro etc, fez com que uma certa camada privilegiada da classe média artística (com alguma consciência política) se sentisse compelida a buscar uma produção nova. Só assim eu consigo explicar as seções “frango com tudo dentro” que existem nas livrarias de São Paulo – expressão que li num ensaio de Cidinha da Silva. Coloca-se ali livros que descendem de blogs feministas, antologias poéticas de slammers e frequentadoras de saraus, publicações jornalísticas, ensaísticas, acadêmicas etc. Há uma demanda que vem sendo preenchida, que não parte apenas de nós (mulheres negras moradoras da periferia, que frequentam a universidade), mas que também parte de uma classe que vem sendo levada ou por solidariedade política ou pela condescendência identitária, mesma classe que está à frente de organizações de eventos e antologias e também de publicações de livros. E eu acho que a existência do meu livro (e de outros), como um livro físico, que foi publicado e circulado num meio de classe média da qual não faço parte, se deve um pouco a isso. Não subtraio a importância desses livros, mas também não perco de vista a dimensão econômica em que estamos inseridas.


VT – Qual livro você acredita que todas as pessoas deveriam ler? Por que?

BG – Pensando que essa pergunta se dirige a quem pode ler e a quem tem contato com livros, pensando que essas pessoas gozam de um privilégio enorme num país como o nosso, eu acredito que essas mesmas pessoas deveriam parar para estudar libras. Por razões capacitistas, o sujeito surdo não conseguiu ser absorvido pela cultura política de esquerda, mas foi e é ainda um objeto retórico para a direita que flerta com o salvacionismo religioso. A população surda brasileira vive o paradoxo de ter sua língua reconhecida oficialmente pelo Estado, mas não é amparada por este em sua própria língua quando necessita de serviços públicos. Também acredito demais no potencial poético desta língua não-oral, as possibilidades que ela nos oferece enquanto poetas ou performers e, ainda – o mais interessante – como mudamos o nosso olhar para as línguas orais após ter estudado línguas de sinais.


VT – Conta seus planos para 2020!

BG – Além dos projetos secretos, devo publicar meu segundo livro de poesia este ano, intitulado A sexualidade de meninas ex-crentes.


-

Como se pesassem mil atlânticos está disponível em: <http://editoraurutau.com.br>.


315 visualizações0 comentário
Post: Blog2_Post
bottom of page