Os cardumes se orientam por um sinal sonoro.
Mas os cardumes não existem neste rio. Carcaças de ratazanas, latas, absorventes, fezes, embalagem de Toblerone, talvez um pássaro morto. Todas as coisas tendem a feder no rio Pinheiros. Algumas boiam e outras não. As que boiam facilitam o trabalho da máquina que insiste tão lenta em retirá-las. Já não acredita no milagre da purificação do rio, mas como máquina cumpre o seu papel de continuar trabalhando até pifar. E pega e mexe e vasculha e acha e perde e acha e lança fora. Mas o fedor continua, talvez seja esse embrulho.
Sou uma mulher livre, mas carrego uma coisa.
Se os cardumes se orientam por um sinal sonoro que eles mesmos emitem, nós, que temos dos peixes quase tudo além do signo, o que não é o meu caso, temos para nos orientar vários sinais também sonoros. Hoje reparei que para cada comunicado do metrô dois a quatro sinais abrem e fecham a sessão de aviso. Alguns áudios chamam os sinais de avisos sonoros. Não importa. Tudo hipnose. Soube há pouco tempo do poder de sedução do tilintar da colherzinha na beira da xícara. Antes de meditar é de costume aquela batidinha com um cilindro de metal na ponta de outro metal. Instrumento delicado capaz de uma ressonância aguda e poderosa num só toque. O sinal sonoro do metrô, coisa que reparei hoje, cumpre seu papel de fisgar nossa atenção de tal maneira que fui refém de sua artimanha. Tão sutil. De repente me senti menos segura. Que coisa! Levei ao tórax o embrulho que levava de lado, seguindo as ordens do aviso que dizia para levar os pertences junto ao corpo porque assim eu estaria cuidando da minha segurança. Foi quando reparei no cheiro. Nada bom. O calor também não ajudava e nada do trem chegar.
Chegou quando, não sei se devido ao suor ou a algo que vazava do embrulho, senti meu peito extremamente molhado, além da lateral similarmente úmida. Mas o ar, assim que entrei no vagão, estava tão gelado, tão gelado, com potencial de conservar qualquer coisa que estava para apodrecer. Inclusive eu. Só que no frio tudo demora a secar, além do mais durou pouco a minha permanência no vagão. Foi um mergulho breve no subterrâneo entre a Cidade Universitária e Pinheiros para logo ser expelida à multidão. E o peixe estava morto e embrulhado. Poderia ser uma carta, uma flor, um retrato, um lenço, mas era um cadáver e que fica delicioso no forno. Há quem goste frito. Eu gosto cru. Mas não assim, peraí, está pingando. E agora é tão frio, e agora é tão quente.
Indecisa quanto ao que fazer, continuo seguindo à direita para o meu conforto e segurança como nos orienta o aviso. Na descida ao abissal da estação Pinheiros alguns nem repararam, outros me olharam com desconfiança, cúmplices do cheiro ruim que nesse calor todos têm. Normal. Aos pingos, entro no submarino amarelo e o jazz me distraí, vem um aviso, vai outro aviso, até que passei do ponto de desembarque. Hipnose. O embrulho pesa, molha e fede. Estou tentada a jogá-lo ao fundo da primeira vala que eu ver. Mas não tem vala, tem vão, vagão e uma rede de proteção que não deixa chegar ao chão um pacote de camisinhas, por exemplo. Tudo para evitar acidentes. Entro de novo no trem. Portas se fecham. Não fico diante delas. Jazz e elegância. Dou passagem. Logo desço. É Faria Lima. O bafo quente doura a primeira camada de escamas do peixe. Imagino-o até com batatas, gratinado sob o sol do condado. Suor e Rosê acompanham bem a iguaria, comeremos até ficarmos tristes esta noite. Imagino.
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Aline Leão, mestranda em estudos literários pela Unifesp, atua como arte-educadora. "Arte, literatura e educação me interessam, tudo junto. À deriva entre prosa e poesia, divago sobre o caminho e escrevo - às vezes tiro foto."
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