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19 de abril

Atualizado: 20 de abr. de 2020


© Fernanda Vieira. Acampamento Terra Livre, 2018. Brasília, Memorial dos Povos Indígenas.




Retrato

Saúdo as minhas irmãs

de suor papel e tinta

fiandeiras

guardiãs

tecendo o embalo da rede

rubra ou lilás

no mar da palavra

escrita voraz

Saúdo as minhas irmãs

fiandeiras

tecelãs

cantando a uma só voz

o que nós sonhamos

o que nós plantamos

no tempo em que a nossa voz

era só silêncio

Graça Graúna¹


Hoje, aqui, eu não vou falar de dor. Temos muitas e que se acumulam há gerações. Hoje, aqui, eu não vou falar do cansaço acumulado de mais de 500 anos de (r)existência. Não vou falar do genocídio. Não vou falar da invasão do continente. Não vou falar do preconceito que encaramos diariamente por sermos quem somos. Não vou falar da destruição ambiental que o sistema-mundo capitalista empreende diariamente. Não vou falar do genocídio legislado que acontece na atualidade. Não vou falar da negligência do governo e sociedade em relação às questões Indígenas. Não vou falar da desonestidade de um governo que não demarca territórios Indígenas desde que prometeu, em 1988. Não vou falar dos madeireiros, não vou falar dos grileiros, não vou falar dos garimpeiros, não vou falar dos sertanistas de contrato e matadores. Não vou falar da avó pega no laço. Não vou falar da violência sistêmica que sofremos. Não vou falar das crianças arrancadas de seus povos. Não vou falar da ditadura. Não vou falar da FUNAI. Não vou falar do Relatório Figueiredo. Não vou falar de extermínio. Não vou falar do silenciamento das línguas Indígenas por decreto e por bala. Não vou falar das “fantasias” e “homenagens”. Não vou falar de quem acha que sabe mais de nós do que nós mesmos. Não vou falar de aliades que demandam gratidão e reconhecimento. Não vou falar do bom-mocismo. Não vou falar dos bem-intencionados. Das bem-intencionadas. Não vou falar de branquitude. Não. Não vou trazer nenhuma lição para a branquitude hoje. Me recuso a ser pedagógica hoje. Hoje não.


Hoje eu celebro estarmos vivas e vivos. Celebro o jenipapo e o urucum que nos cobrem a pele e revestem a alma. Celebro os cocares, adornos e joias que são partes de quem somos. Celebro nossa relação com a Terra. Celebro a coletividade. Celebro a ancestralidade. Celebro a força da mulher Indígena. Celebro a força do homem Indígena. Celebro todos os aspectos de gênero e sexualidade silenciados pela colonialidade. Celebro nossas religiões. Nossa fé. Os Deuses e Deusas de ontem e hoje e amanhã. Celebro os Encantados. Celebro o milho, a quinoa, o cacau, o aipim, o jambu, o açaí e todas as plantas desta terra. Celebro a onça, a capivara, o tuiuiú, o gavião, a rã, o peixe, o tatu, a cobra, o boto, o peixe-boi, a tartaruga, o jabuti, as abelhas e todos os bichos desta terra. Celebro o céu em cima. Celebro o chão embaixo. Celebro as criaturas que rastejam, as que voam, as que correm, as que fluem, as que foram, as que são e as que serão. Celebro as crianças Indígenas que correm e riem, carregando o futuro em cada fibra dos seus corpos. Celebro as anciãs e os anciãos, com sua sabedoria de um tempo que não é linear. Celebro o tempo, que é circular e se move diferente pelas nossas moléculas. Celebro a música e o silêncio. Celebro a casa de reza. Celebro aldeias flutuantes de afeto por todo o continente. Celebro nosso parentesco. Celebro nossa insistência e teimosia em existir e acreditar em um novo mundo possível. Celebro a magia da palavra Indígena. Celebro nossas literaturas. Celebro nossas artes. Celebro nossos corpos. Celebro nossos cabelos de noite, nossos olhos de infinito. Celebro nossos sonhos. Celebro nosso mundo do sonhar. Celebro a dança das estrelas. Celebro o raio. Celebro a chuva. Celebro o vento. Celebro o cheiro de terra molhada. Celebro nossos pés cansados. Celebro o suor dos nossos corpos que dançam. Celebro nossa vida, porque temos muita vida. Porque temos muita força. Porque sobrevivemos a muito e há muito. Porque ensinamos um tanto. Porque aprendemos mais ainda. Porque somos filhas e filhos de Abya Yala. Celebro a força originária que corre nas nossas veias, como rios de força e esperança. Hoje pode ser “Dia do Índio”, mas somos mais do que um rótulo de um invasor. Somos mais do que as narrativas que chegaram de caravela. Somos mais do que as mentiras nos livros de história. Somos mais de 300 povos diferentes e nossa história não começou em 1492. Hoje eu não quero ser didática, quero a acolhida das minhas parentas e dos meus parentes e celebrar que ainda estamos aqui e que somos o povo do futuro, porque compreendemos a matéria dos sonhos e porque seguimos recusando um sistema-mundo que cultua a morte e a ruína da terra. Aguyjevete! Avy'aiterei!


¹ GRAÚNA, Graça. Tessituras da terra. Belo Horizonte: Mulheres Emergentes Edições Alternativas, 2001. p. 42.


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Fernanda Vieira é corpo (sub)urbano indigenodescendente, de origem Xokó e com suas raízes paternas em Aracaju (SE). Escritora, poeta, tradutora, doutoranda, pesquisadora em Estudos de Literatura pela UERJ com bolsa FAPERJ e membro do GRUMIN (Grupo Mulher - Educação Indígena). Publicou Crônicas ordinárias, sua primeira obra de ficção, em 2017, pela Macabéa Edições. No momento, é Visiting Scholar na Boston University com bolsa FAPERJ. Acesse <http://ikamiaba.com.br/>. Instagram: @ikamiababr. Twitter e Facebook: @ikamiaba.

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