Nascida em Ijuí, em 1990, cresceu na cidade de Augusto Pestana. Morou, de 2008 a 2015, em Santa Maria/RS, onde se formou jornalista, cocriou e coeditou a revista O Viés (2009-2015), e publicou, pela Maria Papelão Cartonera, seu livro Deserto de sal (2014). Em 2016 e 2017, viveu em Porto Alegre, onde escreveu boa parte da obra Fio (2019). Voltou para Ijuí, morou um tempo em Augusto Pestana e, depois, retornou à Santa Maria, onde reside e considera dar continuidade ao curso de Letras, iniciado em 2019.
Valeska Torres – Quando começou o seu interesse pela poesia?
Caren Ane Rhoden – Me lembro bem do dia em que abri um livro, descobri uma coisa, parei em pé em frente aos meus colegas, na biblioteca, e li. Era um poema do Mário Quintana, de Velório sem defunto. Hoje tenho outra visão sobre esse mesmo poema e sobre esse mesmo poeta. Relê-lo é como ler homens, de modo geral. É preciso sempre estar atenta ao conteúdo. Eu tinha uns onze anos nesse episódio, mesma época em que me lembro de escrever os primeiros poemas. Tive o hábito da leitura incentivado pela minha mãe, as histórias e as rimas de canções incentivadas pelo meu avô materno, que cantava um pouco todo dia, além de ter tido aulas de música e dança desde os quatro anos, que não me transformaram em musicista ou bailarina, mas me ensinaram algumas coisas.
VT – Como foi o processo de publicação de Fio? Conta um pouco sobre a relação com a editora, com as/os leitoras/es, com o objeto livro, com as/os outras/os poetas.
CAR – Eu iria publicar o livro por mim, fazer um livramento mesmo, fui atrás de orçamentos, pesquisei, até que, um dia, o Flávio Ilha, editor, me procurou. Fomos colegas, em 2016, na oficina de contos do João Gilberto Noll, um dos meus escritores favoritos e com quem tivemos a oportunidade de aprender. O Flávio perguntou se eu tinha algo para ele ler, mandei o livro, ele leu em um final de semana e demos início à parte burocrática.
Acho que publicar um livro gera sensações muito complexas, que vão da euforia ao desânimo. A poesia tem poucos leitores, quando se é um escritor de poemas iniciante, menos ainda; não há aval, mas há as reações das pessoas que, estas também, vão do gostar muito ao não gostar. Você recebe nãos, recebe silêncios, e você tem um ego. Então, é preciso ter algo que esteja entre isso, um equilíbrio difícil. No geral, me sinto feliz com os leitores que tenho e me sinto, ante o objeto livro, um pouco perplexa.
Acho que publicar um livro gera sensações muito complexas, que vão da euforia ao desânimo.
VT – Eu percebo que você é uma leitora voraz, sempre publica suas leituras nas redes sociais. Como é o ritmo de leitura e escrita na sua vida? Acredita que ambas estão entrelaçadas?
CAR – Não sei se sou voraz, gostaria de ler muito mais. Tenho fases, conforme o ritmo da vida. Se necessário, se assim a vida me exige, fico meses sem ler, além de considerar o detox de leitura, que acredito que aprendi em Schopenhauer. Gosto de saber das coisas, gosto de ler todos os dias um pouco. Eu tenho insônia (faço a troca do dia pela noite), especialmente quando estou em algum processo emocional ou quando estou desempregada, então tenho passado madrugadas lendo e escrevendo ora num caderno, ora num projeto, ora noutro. A leitura impulsiona meu ritmo de escrita, me traz mais agilidade e clareza, mas há momentos em que o melhor é praticar o nadismo, ouvir um álbum novo, tomar um café ou uma cerveja.
VT – O que significa para você publicar um livro de poesia em 2019? Tanto no âmbito pessoal quanto diante da atual conjuntura do mundo.
CAR – Perdi minha mãe em fevereiro (ela lutou/lutamos contra um câncer) e minha mãe era uma referência extremamente forte para mim. Saí de casa com dezessete anos, mas ela representava os meus limites e minhas rebeldias. 2019 foi um ano profundamente desgostoso politicamente e não apenas por ser contrário ao meu pensar político, mas, sim, porque é como se existisse uma devastação dos valores em nome desses próprios valores (o que não é possível, algo está errado). Noto uma hipnose generalizada e um medo de pensar sem um guia, o que não é um problema exclusivo da política. Sobre lançar um livro nesse período, alguém me disse que é preciso ter coragem e força. Se eu tenho ambos? Não sei. Mas isso importa menos do que o ato. Em tempos autoritários, a história ensina que a arte enquanto liberdade de todos e todas é uma das primeiras coisas que desaparece, restando a "arte" dos dominadores, em seu exclusivo modo de ver, e com isso não se pode compactuar.
Noto uma hipnose generalizada e um medo de pensar sem um guia, o que não é um problema exclusivo da política.
VT – Se tivesse de escolher uma imagem relevante na sua relação com a escrita, qual seria?
CAR – "Campo de trigo com corvos", de Van Gogh. Esse quadro tem uma importância enorme. A partir dele, em 2008, eu quis entender a significação de corvo/preto – geralmente ligado ao negativo –, entender a construção cultural do seu símbolo e subverter essa ideia sem levá-la, necessariamente, ao seu contrário, mas complexificando a questão. Nenhum dos meus poemas até hoje disse isso melhor do que a música "Amor cinza", do Mateus Aleluia: "Não aceito quando dizem que o fim é cinza / Se eu vejo cinza como um início em cor". E assim eu quis que o preto se expandisse em cor, e ele foi até o Deserto (aqui tendo a conotação do difícil, do ermo, do vazio, do obscuro) de sal (que é branco, mas que também pode fazer imagem para a amargura) e as pontas me pareceram se unir. Essa mesma ideia é radicalizada/radicada em Fio.
Campo de trigo com corvos (1890)
VT – Na sua cidade, como é a relação com a literatura? Quais eventos literários você frequenta, como é a interação com as/os poetas da região, a quais livrarias/bibliotecas costuma ir?
CAR – Meu círculo de convivência em Santa Maria é de pessoas que escrevem, são jornalistas em sua maioria. Tivemos por alguns anos a revista O Viés, na qual sempre tive espaço para publicar meus poemas. Fora desse círculo, procuro ser uma pessoa que ouve, que conhece como pode. Em Porto Alegre, conheci alguns poetas (de outras partes do país) mais fincados na ideia de poetas, digamos assim, mais maduros, o que foi enriquecedor também. Agora te conheci e assim as ligações vão acontecendo. Eu amo bibliotecas muito mais do que livrarias, especialmente porque livrarias me deprimem pelo quesito consumo – fico querendo tudo. Já a biblioteca da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foi bem importante para a minha formação básica e livre.
VT – Qual livro você acredita que todas as pessoas deveriam ler? Por quê?
CAR – Não sei dizer um só, mas alguns foram fundantes. Existe um livro que mudou radical e instantaneamente minha visão do que era escrever e da experiência da leitura, que é A obscena Senhora D, da Hilda Hilst. Van Gogh: o suicida da sociedade, do Artaud, traduzido pelo Gullar, transformou meu modo de ver quase tudo. Por fim, A divina comédia, de Dante, foi um dos livros que mais me impressionou, pelo projeto da obra, pela construção dos versos, pela consistência. Teve um Augusto de Campos nessa história também (lembro-me que foi assim que descobri Mallarmé e entendi melhor o Arnaldo Antunes, de quem era fã na adolescência, através das músicas). A Orides Fontela é extremamente importante para mim, comecei por Teia. Também tem Uivo, do Ginsberg. Estou sempre buscando algo entre eles. Aliás, acredito que seja muito importante que alguém se dedique a traduzir o Ginsberg e a Audre Lorde, de quem tenho os poemas completos, mas em inglês, que me custam muito trabalho para ler [risos], assim como os poemas da Patti Smith. A última poeta por quem eu acabei me apaixonando foi a Patricia Heras, mas que é em espanhol, ou a Juana Bignozzi, ou a Stella Díaz Varín. Não sei, essas referências sempre pairam ao meu redor de uns tempos para cá.
Existe um livro que mudou radical e instantaneamente minha visão do que era escrever e da experiência da leitura, que é A obscena Senhora D, da Hilda Hilst.
VT – Conta seus planos para 2020!
CAR – Meu plano é ler muita prosa, deixar a poesia em paz (e minha sempre insistente dúvida sobre se vale a pena ou não escrever), e me manter lendo para além dos arredores do cânone. Pretendo me organizar melhor, assim pensar melhor – pensar também em como dialogar com as pessoas sobre o que estamos vivendo – e viver melhor. Sinto que muito está fora do meu alcance ou da minha realidade imediata, mas meu desejo é por me manter lúcida e sem menosprezar o outro, ao menos, o que já me parece alguma coisa. Estou trabalhando em projetos de livros, pode ser que algum vingue, pode ser que surja algo novo, veremos. Em um momento da oficina com o João Gilberto Noll, ele me disse que gostaria que eu continuasse escrevendo a partir de uma tentativa de conto que fiz, que ele via algo ali, isso está martelando na minha cabeça. Ele disse para escrever, escrever até o fim: fiz alguns experimentos e acabei preenchendo várias páginas. Também notei que a rotina de escrita da prosa, ao menos para mim, é bem mais disciplinada. Veremos o que acontece.
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Fio está disponível em: <http://www.diadorimeditora.com.br/>.
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